quinta-feira, 28 de abril de 2016

Carl Czerny, o gênio à espera de um descobridor


Durante os anos em que estudei piano, as peças de Czerny chamavam atenção pelo elevado número de Opus. A produção de câmara e sinfônica do compositor era bastante citada em histórias da música e, embora estivesse implícito que desconheciam o material criticado, os autores eram unânimes em afirmar que o excesso de obras significava comprometimento de sua qualidade. Tudo levava a crer que o mérito de Czerny estava apenas nos discípulos ilustres e no desenvolvimento da moderna técnica de execução pianística - o que já não era pouco.

Na década de 1990 era impossível encontrar interpretações de Czerny à venda, mas anos depois, já nos estertores do compact disc, tomei contato com uma primeira gravação mundial de seus Op 627 e 698 para órgão e percebi que ali havia muito a ser desbravado. Em seguida descobri seu concerto para piano a quatro mãos e orquestra, cuja introdução me pareceu pomposa, esquematizada num modelo explorado à exaustão pelos vienenses. O interessante, porém, era que essa ênfase inicial logo arrefecia e, conforme se libertava da amarra, a obra ganhava riqueza e dinamismo. Czerny dominava a orquestra, e isso sobressaía; era muito imaginativo também, incorporava temas, instrumentação e referências variadas. Nas peças seguintes que ouvi, suas sinfonias e variações, os estados de espírito evocados eram cosmopolitas, produto da liberdade que a música experimentava, mas sempre balizados em algum elemento da tradição. Sua música era ao mesmo tempo burguesa e aristocrática, urbana e pastoril. Czerny ia de Viena à Itália, da Alemanha à Espanha, e fazia isso com tal desenvoltura que você acabava envolto por aquela cultura pujante e heterogênea, primeira manifestação do que seria levado a cabo pelos discípulos Thalberg e Liszt.

Talvez pelo lastro clássico e por não configurarem uma expressão definida do Romantismo, essas peças tenham sido preteridas em favor de criações mais características do estilo. Seus concertos para piano estão muito mais para Sturm und Drang do que para Chopin ou para os malabarismos de Liszt. Confrontados então com o que viria em Brahms e Tchaikovsky, são obras de ambição menor, mas em última instância a comparação é inadequada. O segredo da fruição de grande parte dessas criações está em jamais perder o foco na dimensão cultural e considerar que Czerny fala mais sobre a música de seu tempo do que com o íntimo do ouvinte. Em sua produção de câmara e sinfônica, a riqueza de referências empregadas tem equivalente no apanhado de recursos explorados em seus estudos para piano. Isso não deve ser tomado por frieza nem por superficialidade ou tecnicismo, e sim como referência inicial para o que será ouvido.

Para uma avaliação mais justa, o juízo de seus contemporâneos também deve ser revisto. Critérios mudam e os que participam de um processo nem por isso estão mais aptos a observá-lo em profundidade. A fama angariada como professor e autor de livros de execução sem dúvida obliterou a produção enorme e em grande parte inédita de Czerny.

Mas o que o mantém atualmente no ostracismo parece ser menos esse conjunto de avaliações críticas do que a união entre o conformismo do público e o declínio cultural das últimas décadas. É curioso afirmar isso, porque nos últimos 30 anos vivemos um fenômeno inédito de difusão de compositores pouco conhecidos. Temos hoje acesso a uma quantidade de obras como jamais se teve. Descobertas são anunciadas a todo instante, gravações são disponibilizadas, trabalhos são publicados. Essa difusão, porém, não é acompanhada por um cultivo pessoal. A facilidade de acesso faz com que a tarefa de se inserir essas obras num contexto e trazê-la para nosso imaginário possa ser eternamente postergada. Mesmo com o cenário favorável à mudança, continuam no repertório os mesmos nomes de sempre, as mesmas obras, as mesmas histórias, cada vez mais extenuadas pela saturação do ouvido e pelo mecanicismo a que se reduz a audição do já conhecido e previsto. É urgente, nesse sentido, a renovação de nosso repertório próprio, aquele que sempre escutamos e que toca em nossa memória e coração, muito mais do que a renovação do repertório de orquestras e rádios dedicadas à música de concerto, que são sempre dependentes do gosto e da intenção de terceiros.

Por no mínimo duas ou três décadas qualquer comentário sobre Czerny ainda será apenas esboço diante do que há para ser descoberto, relacionado e incorporado à noção que fazemos da história da música. Um recital com peças de Thalberg terá público menor do que outro no qual se execute Liszt. Anunciado um recital Czerny, os ouvintes desconfiarão que o intérprete, em vez de pioneiro, é um principiante. Mas alguém tem de tornar-se referência na difusão dessa produção. O esforço será nobre e o risco valerá a pena.


Um comentário:

Anônimo disse...

Também estudei piano e sempre pensei que Czerny tinha escrito só exercícios, até que um dia achei sinfonias e concertos dele na internet. Muito bom compositor!

João de Carvalho