quinta-feira, 12 de junho de 2014

Salvador Dalí, pop e surreal


Salvador Dalí em 1945
detalhe de fotografia de Martha Holmes
Quem cruzasse a avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, em abril de 1998, encontraria uma enorme fila que partia do Museu Nacional de Belas Artes e se perdia em algum lugar do horizonte, na rua México. Um gigantesco volume, de um rinoceronte de bronze, destacava-se na multidão. Ônibus fretados despejavam centenas de pessoas na calçada. Crianças corriam, ciganas liam mãos, vendedores de balas e pipoca faziam a festa. A exposição de Salvador Dalí era um estrondoso sucesso.

Na imprensa, a repercussão era das mais curiosas. Reportagens oscilavam entre os prosélitos de cadernos especiais e o despeito de jornalistas que replicavam críticas, sempre as mesmas, colhidas nos escritos de Giulio Carlo Argan. No museu, neófitos circulavam com recortes de Veja e do antigo JB em baixo do braço, poucos se importando com resenhas negativas e conceitualismos teóricos, fossem dos surrealistas ortodoxos, fossem do historiador falecido havia seis anos, cuja Arte Moderna se firmara como decálogo no meio universitário.

Encerrada a exposição, durante muito tempo não se falou mais no assunto. Parecia mesmo que tudo aquilo não havia ocorrido. Matérias de jornais, guias, ingressos e fôlderes da mostra haviam ido para o lixo; ciganas haviam mudado de ponto, pipoqueiros ido embora e as crianças, antes em profusão, eram vistas em todos os lugares, menos nas galerias do velho museu.

Não, nem a imprensa nem a interpretação acadêmica da arte haviam derrotado o pintor. Nem o establishment nem as críticas eram responsáveis pelo silêncio. É que deixando a mostra, o público já podia encontrar reproduções de suas telas na internet ou na biografia escrita por Gilles Néret, despejada pela Taschen no mercado nacional a um quinto do preço das colegas de prateleira. A obra do catalão também podia ser impressa em lojas de shoppings que prometiam emoldurar qualquer coisa num prazo de vinte minutos. O cliente comia um sanduíche, ia ao banheiro e voltava para casa com A Persistência da memória na sacola. A realidade insólita do mundo havia se imposto. Dalí mais uma vez saíra vitorioso; apostara em seu tempo; apostara no público e ganho mais uma batalha, mesmo depois de morto.

*

Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech, ou simplesmente Salvador Dalí, nasceu em 1904 e cedo compreendeu que a arte, enquanto linguagem, tem na transmissão de uma ideia seu sentido mais profundo. Compreendeu tão intensamente essa lição a ponto de fazer qualquer um, diante de suas obras, absorver imediatamente sua ideia, reinterpretá-la e de alguma forma nela se reconhecer. Se a Vênus de Milo era a representação de uma deusa, a metamorfose dessa mesma Vênus em gavetas já não se resumia ao referencial mitológico da antiguidade; aludia, em vez disso, ao delírio particular de alguém, de um homem específico, um artista dotado dos meios de elaboração e execução dessa ideia, faltante aos demais. O que Dalí compreendeu foi sobretudo o paradoxo de obras de arte, assim como as ideias, poderem convencer aquele que as frui não apesar de serem absurdas, mas justamente por serem absurdas. Para um surrealista, afinal, o que há na arte é verdadeiro ainda que seja o oposto da verdade. Diante de A Persistência da Memória qualquer um, estude arte ou não, é capaz de apreender isso sem que recorra a meandros teóricos ou a intermediários alheios à fruição.
A Persistência da Memória, 1931 o.s.t. 24 x 33 cm

O surrealismo de que Dalí tornou-se porta-voz está, contudo, longe de tê-lo como protagonista. Talvez tenha nele o representante mais inventivo, mais extravagante, mais sedutor, de quem todos gostam de ouvir as declarações bombásticas, desprovidas de sentido aparente. Protagonista, jamais. Sua obra deve muito aos demais integrantes do grupo; deve muito a Giorgio de Chirico, aos Simbolistas, a artistas fantásticos do passado como Bosch e Arcimboldo, à fotografia e aos meios de comunicação, que explorou, muito antes do advento da Pop Art. Dalí elevou o riso a critério de aferição estética e fez da perplexidade um motivo de deslumbre para o observador; deu, incontestavelmente, uma alma a esse movimento que enveredava por lucubrações políticas desprezadas pelo público. Mas se foi um astro popular, coube, no entanto, a André Breton tornar a empreitada possível.

Em 1917 a palavra surrealista havia entrado para o léxico da arte como subtítulo da peça Mamelles de Tirésias, de Apollinaire. Breton, que conhecera o poeta, recorreria ao termo para nomear seu próprio manifesto, publicado em 1924, o primeiro Manifesto Surrealista. Que acidentes determinem o pensamento dos homens, é de se discutir; o fato é que durante a 1a Guerra esse jovem intelectual francês havia aprofundado o conhecimento da psicanálise freudiana e travado contato com Jacques Vaché, um excêntrico escritor também admirador de Apollinaire. Levado pela guerra e pela formação a um hospital psiquiátrico em Saint-Dizier, Breton finalmente pôde constatar que a criação humana não derivava apenas de uma linguagem e um intelecto submetidos a estruturas racionais.

A experiência, como é de se esperar, despertara no entusiasta pelos labirintos da mente o interesse pelo dadaísmo e por artistas que criavam obras de caráter subjetivista. No entanto, buscando fundamentar-se em outros princípios, acabou rompendo com a tendência para estruturar seu manifesto em defesa de uma criação baseada no universo onírico, na livre e espontânea associação de ideias e na expressão psíquica rápida, direta, independente de filtros e rigores lógicos. Em 1925, Breton deu então corpo físico a esse arcabouço edificado inicialmente para a poesia. Arregimentou artistas para figurarem na primeira exposição do grupo na Galerie Pierre, em Paris, entre os quais Pablo Picasso, Hans Arp, Max Ernst, Paul Klee, Man Ray, Joan Miró, André Masson e Pierre Roy. Em seguida agregou outros nomes ao grupo, como René Magritte, que se firmava como um representante local em Bruxelas, e, numa segunda exposição, ampliou o distanciamento dos valores culturais europeus com a presença marcante de esculturas primitivas da Oceania. Após finalmente inaugurar a Galeria Surrealista, expôs obras de Yves Tanguy, filiou-se ao partido comunista e decretou uma das máximas do movimento: a beleza seria convulsiva - ou não seria.

Foi em 1929 que Dalí despontou nesse cenário, com Um cão andaluz, ao lado de Buñel. Saído de um flerte com o pós-impressionismo, Picasso e Matisse, o artista catalão não havia, contudo, permitido que o entusiasmo pela linguagem clássica arrefecesse. A proeminência intelectual de Breton também estava longe de o intimidar na defesa de ideias próprias, consolidadas num obscuro Manifesto Amarelo, e no desenvolvimento daquilo que chamou Método Paranoico-Crítico. A amizade com García Lorca, determinante para o início de carreira, tampouco o desviara do caminho rumo à independência. O pintor logo estabeleceu-se como figura idiossincrática do movimento. Seguia preceitos próprios, derivados de sua personalidade, e aprofundava-se cada vez mais num personagem administrado por ele próprio, para o qual convergia toda sua criação.

Só se compreende o triunfo de Dalí quando se percebe essa diferença substancial entre sua pintura e a de outros artistas que, anteriores ou coetâneos, exploraram a temática do maravilhoso, do fantástico e do absurdo. Não se chega a Magritte por Le faux miroir, nem a Bosch pelo tríptico do Jardim do Éden, muito menos a Blake por The Ancient of Days como se chega a Salvador Dalí por sua obra. Recheadas de autorreferências como sonhos eróticos, a costa da Catalunha e idealizações sobre a mulher Gala, essas telas culminam sempre na figura de seu criador. O culto ao soberano do reino subconsciente é, sobretudo, a chave interpretativa, dada a priori àquele que se deleita nesse universo de referenciais absolutamente demarcados.

          De posse do jargão freudiano caro aos surrealistas, Dalí partiu então para a realização literal na arte da tese de que algo conflitante acaba relegado ao subconsciente humano, de onde se manifesta sob a forma de neuroses. O pintor transformou, assim, a tela numa superfície para transcrição em figuras desses conflitos não solucionados, que envolvem sempre alimentos, sexo e putrefação, referentes às fases oral, anal, fálica, de latência e genital da teorização psicanalítica. Ao visitante de exposição mais treinado tudo caminha bem até aqui. Basta interromper o percurso da tese e não considerar que a neurose, após desmoralizada pela consciência, deveria se desfazer ou ter sua manifestação migrada para outros campos da atividade do pintor, o que o teria desviado da fatura de telas. Mas na arte não é verdadeiro até mesmo o oposto da verdade?

O olhar crítico e racional conduz, como se vê, a indagações incompatíveis com o apelo à irracionalidade do pintor. Sua produção também em nada pode corresponder à espontaneidade e velocidade do automatismo psíquico inicialmente idealizados por Breton. Uma obra não pode jamais ser fruto irrefreáveis afluxos mentais. Cores são selecionadas, dimensões são escolhidas, uma composição é esboçada - e o tempo gasto nesse processo seria suficiente para o estado de espírito de Dalí ser tomado por outras obsessões. Ocorre que, apesar disso, há em suas criações uma referência clara ao subconsciente e sua linguagem analógica, tantas vezes confusa, impossível e antiestética. Nessas telas reina um estranho jogo de pontos de interesse visual e arbitrariedade de escalas; reina um espaço que consiste mais em outro elemento do conjunto do que no âmbito onde coisas e fatos se desenrolam ou deveriam estar.

A elasticidade de acepções e fundamentos registrada nas obras do gênio da Catalunha é, portanto, a mesma necessária à sua fruição e julgamento. Isso porque sua arte é eminentemente representativa, ainda que represente o que jamais poderá ser atestado. Como não há uma estética comum aos sonhos e delírios dos homens, o observador pode apenas reconhecer nessas imagens uma alusão ao mundo subconsciente, onde estão os elementos que, correspondendo às teses da psicanálise, conferem-lhes um nexo. Assim, a contradição entre a lógica expositiva e o que está nas telas tem nesse impenetrável subconsciente sua única chave interpretativa. Qualquer um, estude de arte ou não, é novamente capaz de apreender de alguma forma essa relação sem que recorra aos meandros de teorias, sejam da arte, sejam da psicanálise, ou a intermediários alheios a essa transmissão de ideias.

Como toda fórmula que recebe novos ingredientes, a receita de Dalí, porém, nem sempre foi a mesma. Durante sua vida julgava-se que a importância de sua criação restringia-se aos anos iniciais, entre 1926 e 1935, tidos como surrealistas por excelência. A ida para os Estados Unidos e o desenvolvimento do viés econômico da produção teriam-lhe comprometido a inventividade e o tornado repetitivo. O período místico e religioso que se sucedeu seria, enfim, o da decadência.

Hoje, entretanto, a catalogação de sua obra e o distanciamento temporal permitem que se siga menos à risca esse esquema e que se reconheça sua trajetória como um todo, em seus períodos de criatividade contínua, mudança de rumos, experimentações, repetição de fórmulas e pontuais criações importantes. Que o pintor tenha transitado do desenho exuberante e orgânico para a rigidez de composição, não há dúvida. Que tenha transformado a obra em cartazes para velhos espetáculos, tampouco. Mas Dalí continua Dalí, mesmo na repetição e cansaço; mesmo, e sobretudo, no abandono do protagonismo do próprio subconsciente pelo de quem observa suas telas.

A fase inicial de sua produção já surrealista, tida como áurea, é marcada pelas composições ricas e intrincadas, em que o olhar percorre a imagem em múltiplas direções, desviando-se por contornos sinuosos, perdendo-se no horizonte até encontrar-se de novo envolto em elementos que levam a outros e conduzem a novos caminhos a serem percorridos. Em obras como Jogo Lúgubre, se pudesse ser traçada uma linha que ganhasse espessura conforme se aproximasse de pontos de interesse focal; se essas linhas fossem avizinhadas por gotejamentos onde o autor dispõe formas que paralisam e desviam temporariamente o percurso do olhar; se cada um desses percursos sobrepostos ganhasse uma cor distinta, poderia-se esboçar uma armadura típica das obras de Pollock.

Jogo Lúgubre, 1929
Óleo e colagem s/ cartão  40,4 x 30,3 cm
Longe de ser a fundamentação de sua linguagem, esse não é senão um dos componentes que retorna pontualmente a seu vocabulário. A paleta de cores vivas, a fluidez do desenho e o horizonte demarcado, consideradas as constantes da primeira fase, também são relegados a um plano secundário nas criações posteriores; tornam-se manifestações isoladas de uma composição.

          Isso se explica pelo fato de, a partir da Segunda Guerra, sua produção ter sido influenciada pelo impacto da catástrofe atômica. Assim, a inventividade da forma foi no geral preterida por uma abordagem visualmente menos exuberante, cuja rigidez compositiva revela facilmente a hierarquia dos componentes da tela. O surrealismo foi a partir desse período reelaborado, ganhou cunhos reflexivos e morais que se afastam do excesso de psicologia da fase inicial. As figuras geralmente são fiéis à aparência e o que surpreende quem as vê já não é mais sua decomposição e o percurso do olhar, mas a concomitância e relação dos elementos representados.

          É em telas como Separação do átomo que o observador deixa de encontrar no subconsciente do pintor a chave interpretativa da obra. Dalí promove nessa imagem a fusão dos mundos antigo, contemporâneo e imaginário; a fusão do cavaleiro medieval com o homem hodierno a quem resta, após a hecatombe, apenas um tacape selvagem; a fusão do cipreste, símbolo da morte, com a vida em pujança, verdejante no deserto árido. O pintor promove a integração da caneta-tinteiro, usada para a escrita da história, com a maçã do pecado original, transfigurada em átomo que sofre a decomposição de seu núcleo; promove a integração dos nichos renascentistas com figuras que contra eles se rebelam numa luta insólita, de costas para o observador; promove a integração do sex-symbol em roupas colantes com a decadência moral que mais parece saída das séries de ficção científica. Dalí divide simetricamente a composição em campos sobrepostos na vertical e espelhados, na horizontal; determina-a em duas zonas de cor, azul e ocre, que escurecem à medida que se afastam e separam a imagem do exterior, conduzindo o olhar de quem a observa a um infinito na paisagem. Essa perspectiva, de um ponto de fuga central e primária, é, na verdade, uma alusão aos manuais técnicos industriais, onde o elemento principal aparece disposto frontalmente, em detrimento do cenário onde se encontra. Assim, a fusão atômica é para o homem técnico-científico preponderante ao mundo por ela mesma destruído. Daí as sombras incongruentes e figuras que oscilam da minúcia preciosística ao sfumatto inidentificável; daí a culminância da obra na analogia da descontinuidade da matéria e do tempo diante da compreensão atomística do mundo. Aqui, o surrealismo se transfigura. Ganha caráter novo, uma camada moral de interpretação, e torna-se muito mais um hiper-realismo surreal.

A Separação do Átomo, 1947
 o.s.t. 76,2 x 45,8 cm
O grande público atual certamente julga Separação do Átomo equivalente às obras da primeira fase, mas ainda assim, qualquer um, estude arte ou não, é novamente capaz de apreender a ideia de Dalí sem que precise recorrer aos meandros de teorias ou a intermediários. Nessa tela o pintor explora um surrealismo que também já não mais se resume ao contrário do que o observador pode atestar como verdade. O marxismo, que em 1939 havia levado Breton a expulsar do grupo esse católico e individualista, fragmentaria-se e adquiriria novas roupagens sessenta anos mais tarde. No xadrez geopolítico o ocidente capitalista absorveria o discurso entrópico, perderia suas torres e bispos, até que restassem apenas os peões, reis e cavalos. O apocalipse nuclear não se concretizou, mas o visitante de exposições, comprador de souvenires e das reproduções de vinte minutos, reconhece em nosso tempo pesadelos análogos aos que atormentavam o velho pintor. Não é esse um dos trunfos da arte, manter-se atual para além das contingências de sua época?


O abuso do insólito, o excesso de transgressão, a subjugação da arte às sombras da inconsciência, o culto ao ineditismo, a ironia de uma linguagem realística empregada para representar o irreal - a receita cansa até mesmo seu próprio autor. Dalí, que fez o público descobrir o quanto há de ridículo na arte e nas pretensões dos que dela vivem, que desmoralizou a seriedade da teoria psicanalítica e do falatório conceitual da modernidade, que criticou a arte moderna pela substituição da imagem de homens por figuras geométricas, que expôs em público o pavor da guerra atômica e um desejo por fama e dinheiro incontrolável; Dalí, que aprofundou sua obra em si mesma, em si mesmo, é o mesmo que levou o ideário surrealista ao paroxismo. O Dalí de Jogo Lúgubre e Separação do Átomo é o mesmo do apocalíptico Cristo de São João da Cruz, tão superficial quanto admirável, tão profundo quanto debochado.

Cristo de São João da Cruz, 1951
óleo sobre tela, 205 x 116 cm

Criado a partir do desenho atribuído ao próprio santo após sua visão, o Cristo realiza a atualização ontológica de um artista que, emergindo caos, das associações operadas pelo irracional, concluiu ser o homem, no final das contas, fruto de uma unidade, de um equilíbrio entre o conhecido e o ignorado, entre o que domina e o que desconhece, entre o lógico e o simbólico, entre a criação, o sofrimento e a destruição. A psicanálise que havia feito o homem do século XX fundamentar sua existência em mitos do subconsciente é aqui abandonada, relegada ao papel de componente da criação. A exuberância de formas e de percursos do olhar é substituída pela alusão sintética da própria cruz ao triângulo radioativo sobre uma paisagem em cujo horizonte se desvela um brilho análogo ao da explosão nuclear. Às desconhecidas forças da psique, que já haviam sido permeadas por uma camada interpretativa moral, foi acrescido então um elemento ordenador contrário a tudo o que poderia ser julgado surrealista. Mas a união de Cristo crucificado com o brilho atômico só é possível pela conjunção entre a reafirmação das raízes mais profundas do surrealismo e a aparente ruptura com o eu superlativo de Salvador Dalí. Isso porque nem a arte, nem a psicologia ou filosofia tomadas isoladamente oferecem a solução para problemas cujas respostas estão apenas no universo imperscrutável do pintor, um universo do qual a ordem emerge como um dos produtos do caos para levar, através de formas e cores, o observador a enxergar o mundo desde o ponto de vista do próprio Deus.



*

As milhares de pessoas que, em 1998, perdiam-se no horizonte da rua México chegavam ao museu ávidas por esse universo peculiar, regido por leis próprias, mutáveis, a ser fruído pelo deslumbramento ante uma profusão de imagens com estranhos significados. A arte, para elas, não deveria se transformar num problema teórico, mas a teoria sobre o desconhecido, o ignorado, é que deveria integrar-se à criatividade humana. O sucesso de Dalí está no fato de ser o porta-voz desses que não se identificam com exatidões interpretativas nem com o intelectualismo que tomou de assalto a arte moderna e contemporânea. Dalí não oferece problemas nem soluções, senão um vislumbre. É, como todos os homens, ilógico, espontâneo, e sua incongruência é a do indivíduo que, perplexo ante o mundo, deixa-se perder em devaneios interiores, embriagado pelo absurdo da vida e da incompreensão de seus sentidos mais profundos. Dalí compreendeu que, antes de se resumir a uma intelectualização, o surrealismo era parte indissociável da natureza onírica e imaginativa do homem, esse ser de impulsos, desejos conscientes ou não, vícios, virtudes, potências e limitações desconhecidas em sua totalidade. Dalí recorreu ao gracejo, dispôs objetos de categorias distintas numa mesma situação, deu-lhes novas interpretações. E provou àqueles que acreditam na arte como defesa da verdade que, para a arte, a verdade nem sempre é critério para aferição de qualidade; provou que autenticidade e originalidade tampouco caminham juntas. Esse foi Salvador Dalí, alguém que soube, sobretudo, ver-se pelos olhos de outros; que soube reconhecer o eterno lugar ocupado pelo artista no imaginário popular: o do gênio cuja glória é o desfrute simultâneo da liberdade e condescendência reservadas aos deuses, aos reis - e aos loucos.


Este ensaio foi apresentado no curso de Pós-Graduação em História da Arte e Arquitetura no Brasil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Nenhum comentário: