terça-feira, 16 de setembro de 2014

Ângelo Monteiro, diante do Ignorado




"Se ouvirdes algum fraco falar no sentido do Céu, desconfiai: será uma forma de ele negar ou trair o sentido da Terra. Eles, os fracos, não sabem querer, não sabem desejar, não sabem possuir, não conseguem ser fiéis ao seu querer, ao desejar, ao seu possuir. E por isso apontam para o Céu, porque não o trazem dentro de si. Porque dentro de si mesmos são baixos e, por isso, para enganar-nos, apelam para as alturas. Que tais alturas caiam sobre suas cabeças e acabem por esmagá-los."

"Sou reacionário... reajo à barbárie"


Na era do twitter, facebook, da saturação de imagens, vídeos, hangouts, aulas e entrevistas online, quem quer um contato mais próximo com Ângelo Monteiro deve se contentar com pouco. Uma palestra, uma entrevista, uma conversa com admiradores em seu apartamento. E só. Talvez para ele isso baste. Talvez os anos como professor de estética tenham satisfeito o desejo de exposição. Talvez siga à risca o que um dia afirmou sobre ficar em casa e aprofundar a concentração, em vez de deixá-la perecer entre as misérias do tempo. Mas o público, antigo e conquistado nos últimos lançamentos, pede mais. Que Ângelo escute o apelo.

Se o poeta não é, portanto, ignorado pelos que pensam, muito menos é "O" ignorado de que trata no livro. Tem-no em si, é parte dele, sabe-o querer e, para quem não leu, vale o aviso, já que a era digital é também a de Narciso e o título hoje pode dar a impressão de mais um texto autorreferencial. O mundo mudou desde 1978, quando o trabalho foi concluído e a necessidade da ressalva demonstra o quanto se agravou o mal ali diagnosticado.

Poeta de formação filosófica, Ângelo cumpre em O Ignorado preceitos simultâneos de artista e professor. Busca o caráter pedagógico da arte, cultiva a compreensão simbólica do homem, do universo, para se desvencilhar da panaceia teórica que grassa em épocas de crise. À primeira vista, os ataques ao desvario, à estupidez, aliados à consciência da necessidade de imersão nos âmbitos mais profundos da realidade, fazem dele um discípulo de Nietzsche. Porém, à revelia dos incautos, Ângelo não toma por antídoto o outro veneno e, em rápidas transições, estabelece dimensões valorativas que negam piedosamente as do autor de Zaratustra.

Equiparar os pensadores seria, por isso, um engano. A amargura solitária de Nietzsche subtrai ao homem a velha promessa de redenção. O filósofo dos aforismos reorienta a interpretação de símbolos, decompõe estruturas inteiras para instaurar a assustadora experiência de se viver entre escombros. Ângelo não padece da sanha demolidora. Em vez disso, considera tanto o cógnito quanto o incógnito, tanto o que o gerou quanto o que existia muito antes do surgimento do primeiro homem. Rejeita o niilismo e a imposição a si de uma carência diante da possibilidade de viver a plenitude; reafirma, assim, a vida em toda sua verdadeira potência.

O forte é aquele que vive as contradições, diz Nietzsche. Este, porém, vislumbra o sentido e unidade de seu drama, responde Ângelo, complementando que esse drama se agrava à medida que o indivíduo se afeiçoa existencialmente aos obstáculos que o distanciam daquilo que lhe falta. Na leitura de O Ignorado a verdade se liberta da mentira sistematizada; o rio deixa de ser caudaloso pelo lodo que o encobre. "Ser forte e, porque forte, fiel, porque o que caracteriza o fraco é a impotência para a fidelidade". No mundo do marketing pessoal, da prostituição virtual de consciências, da adesão ao sentimentalismo de causas abstratas, a mensagem do escritor offline incomoda.

Para o poeta, a linguagem do pacto deve ser restabelecida, a linguagem da união, em lugar da ruptura, que consiste na negação de si, na negação da própria condição humana de reconhecer-se no todo e no seu semelhante. O que Nietzsche nega, Ângelo considera; o que um dispersa, outro une e conexiona. O que Nietzsche afirma poder ser abrangido pela vida, Ângelo defende como impossível de ser reduzido a uma forma. Onde Nietzsche propõe o abandono ao inexorável, Ângelo propõe a confiança no desconhecido ordenador, porque o forte reconhece e, sobretudo, confia naquilo que traz em si sem que dele seja autor.

Em plena crise, nesses anos em que o triunfo da arte é medido por sua redução a mercadoria teórica, Ângelo preconiza a estética do mito. Não a do mito forjado, cafetizado pela engenharia social e meios de comunicação, mas a do inatingível, do caminho em direção a uma dimensão ao mesmo tempo ética e supra-histórica. Desembriagado da apoteose do eu, aquiesce à reconciliação desse eu com o que o possibilita ser. "Cada época (e também cada homem) precisa ir além de Narciso; recolher, em meio ao caos que sempre houve, os paradigmas eternos".

A arte sempre guiou o homem, foi pedagógica, e hoje, mergulhada em si, pouco tem a nos oferecer para além de relações conceituais internas. "Se tudo é igual, a diferença perece", evoca o ditado. Se tudo pode ser arte, nessa recusa de uma hierarquia a arte acaba por rebaixar a si mesma.

Isso não basta aos cultores do paradoxo contemporâneo?

A resposta, infelizmente, é não.

A crítica à produção atual tem levado o poeta a frisar que é menos um conservador nostálgico do que adversário das revoluções. Se essa nuance já conhecida pelos leitores de seus ensaios de estética passa despercebida pelos que tomam o primeiro contato com suas ideias, é no Tratado da lavação da burra que estes encontram a prova definitiva de que a reverência prestada à tradição está longe do maniqueísmo. É também em Arte ou desastre que descobrem o arcabouço de seu pensamento, de sua contribuição à interpretação de textos de estética clássicos, de seus critérios e pontos de vista.

Sua crítica à arte contemporânea é questionável, evidentemente, mas jamais pelo teor saudosista, que inexiste. Seu pecado está apenas no olhar pouco generoso lançado sobre uma época que insiste, ela mesma, em se fazer lembrar por seus piores representantes. Nem tudo o que é atualmente produzido participa dos valores preteridos por Ângelo. O Ignorado sempre reaparece, transfigurado, às vezes irreconhecível. Não é ele irredutível a um padrão? A uma forma?

O pensamento de Ângelo é fruto de uma sinceridade desvelada na aplicação de juízos defendidos como superiores. E a quem ainda acredita que o autor apregoa a repetição de velhas fórmulas, vale a recordação de uma de suas regras: "A arte deve, sim, ser normativa; deve ensinar ao homem a redescoberta de si."  Como "não haverá nunca alegria enquanto a resignação dos fracos dominar a terra", o forte também será, por consequência, aquele aberto à própria redescoberta e fiel à verdadeira arte, seja de nossos dias, seja da Idade Média ou Antiguidade.

A literatura de Ângelo lança em nosso solo as sementes da reflexão e imaginação. Para quem enxerga a arte como produto de um manual preestabelecido, a lição de O Ignorado é um antídoto: Se é a aceitação do ignorado que faz do homem homem, é sua aceitação que faz da arte arte.
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