sábado, 23 de março de 2013

A Essência Humana da Arte

Albert Bierstadt - Among the Sierra Nevada Mountains, 1868


          Diante da dificuldade em expressar com palavras o mistério de seus estados de alma, o homem produz figuras, cria música, estrutura narrativas - tenta, enfim, dar testemunho daquilo que vivencia interiormente e que julga também importante para seus semelhantes. O artista faz da tela uma imagem - confere-lhe valor; transforma essa imagem num instrumento que nos evoca recordações e experiências que até então acreditávamos somente nossas; transmite-nos idéias. E nesse sentido, ao contemplarmos uma obra, vislumbramos o caráter universal da arte. A arte é uma linguagem capaz de unir almas tão distintas, apartadas pela diferença de idiomas, pela distância geográfica, isoladas pela incompreensão do meio cultural e pela irreversibilidade do tempo.
          Não se pode abranger com palavras algo que transcende o vocabulário. A cor na pintura não equivale à entonação da voz num discurso nem uma frase falada corresponde à melodia musical. De uma narrativa extraímos, contudo, imagens, cheiros e sensações tão díspares quanto o amor e o medo; numa sinfonia escutamos o júbilo ou a desolação de seu autor; uma escultura desperta nosso intelecto investigativo. A característica fundamental da arte é, portanto, seu poder de compactar numa obra uma complexidade de evocações, informações e significados que a palavra seria incapaz de expressar. A arte acrescenta à nossa percepção da natureza, dos objetos, o valor que lhes dá o homem. Através dela o real se enriquece pelo ato humano e o horizonte de comunicação expande-se para fronteiras desconhecidas.
          Não somos desonestos quando não sabemos o que dizer sobre uma obra que nos impressiona. As palavras quase sempre nos faltam por nossa própria consciência de suas limitações e, se enquadramos um artista em termos preestabelecidos, negamo-lhe de certa forma a individualidade das idéias ou o mérito de ter realizado algo que outros não fizeram tão bem. Ao reduzirmos um autor a determinada escola ou grupo, restringimos a compreensão de sua obra; apontamo-lhe antes o genérico, sem sublinhar o que nele é específico; tratamo-lo com base em termos alheios; tomamos como referência a realização de seus pares, não sua própria.
          Existem momentos durante a contemplação de uma obra em que nos descobrimos imersos nesse universo que a vida cotidiana rejeita, tão amarga e maliciosamente, como irreal e alienante. Antes de significar um devaneio, um delírio, esse estado de alma corresponde, ao contrário das concepções utilitárias e materialistas em voga, à essência de nossa condição humana. Se vivêssemos apenas da matéria não haveria símbolos nem estaríamos aptos a imaginar o que ocorre além de nosso âmbito imediato. A voz e a música seriam apenas vibrações no ar; as imagens, apenas volumes e cores. Não haveria passado, futuro ou eternidade, pois seríamos incapacitados de preencher as lacunas do desconhecido com nossa imaginação, nossa experiência, nossos vislumbres e dúvidas. Tampouco haveria arte. Haveria apenas objetos sem significado, sem valor, nada mais.
          Assim como para um religioso a matéria é o abrigo temporário do espírito, para o artista a matéria - a tela, a pedra - é o suporte para algo maior, uma idéia, uma evocação, um símbolo que, se não fixado, será esquecido ou corrompido antes que outros indivíduos o testemunhem.
          A arte é a maneira mais sincera de vivenciarmos o horizonte de nossa percepção e comunicação. Para contemplarmos uma obra não precisamos de qualquer instrumento que não o que nos foi dado pelo próprio destino de nossa espécie. Não precisamos a todo momento de intermediários que interfiram numa linguagem de natureza tão autêntica. Fôssemos livres desde muito jovens para desenvolver nossa própria essência, teríamos, guiados pela observação de nossos semelhantes, uma percepção mais espontânea e abrangente do significado - dos símbolos - do objeto artístico. Teríamos uma crença robusta na capacidade universal de se produzir o honesto, o verdadeiro. Mas cedo entramos em contato com assombrações de pesadelos alheios e sofremos uma perturbação naquilo que trazemos de mais nobre. Somos cobrados a racionalizar e a subordinar nossa percepção à insuficiência do vocabulário. Somos obrigados a reduzir a palavras algo por elas inabarcável. Perdemos parte de nossa capacidade inata de comunicação. Esquecemos que as palavras, quando muito, apenas descrevem ou iluminam o caminho da contemplação; não substituem a experiência contemplativa em si. E depois, confusos, não é de se estranhar que percamos a capacidade de reconhecer e acusar a má arte, aquela mascarada por emaranhados de pseudoconcepções teóricas, cuja validez depende tão somente da garrulice de indivíduos que se consideram ungidos por excelsitudes sapienciais. Perdemos, muitas vezes, a crença na própria arte. Desconfiamos dos artistas e de suas intenções.
          Se abandonarmos a descrença no caráter transcendente da arte e reabrirmo-nos para nossas capacidades inatas, deixaremos de lado a restrição que nos foi imposta pelas mesquinharias de um ambiente cultural condenado, mantido por falsos educadores, falsos pensadores, falsos humanos que são, na realidade, assassinos de almas e aspirações. Se abandonarmos essa descrença reestruturaremos valores, superaremos o horizonte delimitado pela deterioração de nosso idioma, testemunharemos o relato de grandes homens, superaremos a irreversibilidade do tempo, tomaremos contato com o perene. Vislumbraremos, enfim, a eternidade.

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Um comentário:

Unknown disse...

Muito boa síntese!