segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O Jardim do hospital de Saint Paul, uma obra de Vincent van Gogh



O Jardim do Hospital de Saint Paul de Mausole, 1889
o.s.t. 71,5 x 90,5 cm -  Museu van Gogh de Amsterdam


Assim como a interpretação de uma Última Ceia ou de uma Anunciação estará falha sem a compreensão de seu conteúdo teológico e simbólico, a leitura de uma tela de Vincent van Gogh estará incompleta sem a consideração da psicologia de seu autor. Esse estranho artista, que nos legou desenhos e telas criadas em meio à embriaguez de sonhos, delírios e amargos fracassos, deve ter a produção estudada por um viés próprio, tantas vezes reinterpretável pelo excesso de subjetivismo nela contido e incompatibilidade com os critérios usados para o julgamento da obra de artistas que trabalhavam sob a plenitude da razão. A obra de van Gogh deve ser compreendida antes de mais nada como uma via de mão dupla. Enquanto por um lado a técnica nela empregada está a serviço da expressão da psique do autor, por outro essa mesma psique é a fundamentação da temática por ele escolhida, de sua linguagem pictórica e gráfica.
Há um século as idiossincrasias do pintor holandês despertam o interesse de biógrafos e historiadores, o fascínio do público e a paixão de qualquer um que para ele se volte com atenção. A partir do estudo de correspondências pessoais, dos relatos de amigos e parentes, estabelecemos uma terrível identificação com o drama contido nesse legado. E, como na encenação das antigas tragédias, descobrimo-nos participantes de um encadeamento cuja resolução conhecemos de antemão.
A obra de van Gogh nos faz participar de um percurso tristemente humano. Através dela tornamos em ato um testemunho gravado a tinta em seus mais profundos graus de compreensão. Nela, realizamos uma das mais nobres tarefas da arte - aquilo a que chamamos trans-subjetivação.

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"(...) Aqui segue a descrição de uma tela que está à minha frente no momento: é uma vista do parque do asilo em que estou parando; à direita, um terraço cinzento e a parede lateral do prédio. Alguns arbustos que já perderam as rosas, à esquerda; uma extensão do parque - ocre avermelhado; o chão gretado pelo sol, coberto com as agulhas que caíram dos pinheiros. Neste lado do parque foram plantados grandes pinheiros, cujos troncos e galhos são de uma coloração ocre-avermelhada; a folhagem verde é entristecida por uma mistura de preto. Estas árvores altas se erguem contra o céu da tarde, com faixas roxas contra um fundo amarelado que, à medida que vai subindo, torna-se rosa e depois vai ficando esverdeado. Um muro, também ocre-avermelhado, interrompe a visão e é superado somente pelo alto de uma colina de nuances roxas e ocre-amareladas.
Bem, a árvore mais próxima é somente um tronco enorme que foi atingido por um raio e depois serrado. Mas um ramo lateral se projeta muito alto e deixa cair sobre o solo uma avalanche de agulhas verde-escuras. Este gigante sombrio - como um homem orgulhoso, mas derrotado - contrasta, quando se considera que tem a constituição de uma coisa viva, com o sorriso pálido de uma última rosa no arbusto murcho que se encontra diante dele. Por baixo das árvores foram colocados bancos de pedra, agora vazios, diante de cercas-vivas de buxo, que parecem amuadas. O céu é espelhado, em amarelo, por uma poça d'água deixada pela chuva. Um raio de sol, o último raio do dia, aviva o ocre sombrio até torná-lo alaranjado. Aqui e ali, pequenas figuras negras vagueiam por entre os troncos das árvores.
Você perceberá que essa combinação de ocre-avermelhado, de verde ensombrecido por cinza, com as faixas negras que cercam os contornos, produz uma sensação de angústia - o que eles chamam por aqui de vermelho-negro - da qual alguns de meus companheiros frequentemente sofrem. Além do mais, o motivo da grande árvore ferida pelo relâmpago e aquele sorriso doentio rosa-esverdeado da última flor do outono concorrem para confirmar essa impressão."
Carta de van Gogh ao pintor Émile Bernard, dezembro de 1889

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O que esperamos de uma paisagem é que seja, no mínimo, um descanso para os olhos. Que nos proporcione um momento de tranquilidade ou que nos recorde alguma boa experiência que tenhamos tido. O que esperamos de uma paisagem é, em última instância, que nos evoque bons sentimentos, seja de admiração pela natureza ou a imaginação de alguma atividade em que sonhamos estar envolvidos.
Ninguém gostaria de ter na sala de visitas a imagem de uma tragédia familiar, de um parente moribundo ou a figura de si mesmo em trajes de interno num sanatório. Preferimos esconder certas passagens da vida que não nos parecem nobres, afinal, quando escamoteadas nossas fraquezas, nossos dramas e derrotas, mantemos frente aos demais aquela fachada de domínio e sucesso com que desejamos parecer sustentar nossa existência. Um Junguiano chamaria essa vitrine de persona e, o que suprimimos, de sombra. Um antropólogo ou sociólogo buscaria nessa supressão motivações estruturais, hierárquicas ou econômicas de nossa cultura. Um religioso explicaria a atitude pela necessidade de beleza e decoro. Um esteta, pela eterna busca do evocativo, do revelador. Um cético, pela hipocrisia e falsidade.
Um artista - um grande artista - não busca explicações. Não dá nomes, não teoriza nem sai à procura de soluções para esse problema. Busca, antes de mais nada, uma forma de comunicar ideias e experiências humanas de maneira que, durante a apreciação da obra, o observador possa captá-las. Ao simples conteúdo temático de sua criação agrega também uma técnica e linguagem próprias, capazes de nos dar pistas do tipo de homem que a elaborou.
O repertório de experiências humanas está contido admiravelmente na arte. Desde as narrativas míticas e literárias, passando pela síntese da poesia, percorrendo o imaginário contido na pintura, atravessando a catarse imediata proporcionada pela música até chegarmos à dramatização exposta diante de nossos olhos pela escultura e o teatro, podemos dizer que se a humanidade deixasse de existir, seria possível reconstituí-la em sua complexidade, sua grandeza e miséria, seu fracasso e triunfo, por sua arte.
Ainda que na história identifiquemos os leitmotive e objetos de glorificação dessa produção, não é verdade, contudo, que um dia tenha havido temas proibidos para nós, artistas ou fruidores. Não é verdade, tampouco, que um dia haverá essa interdição. A arte, por lidar com analogias, jogos e figuras de linguagem, sempre nos ofereceu a possibilidade de manipulação da realidade e das maneiras como a percebemos; sempre foi uma poderosa arma de defesa, estabelecimento e propagação de concepções morais, políticas e doutrinais sobre a sociedade. Mas sempre foi também uma inclemente arma de ataque e reação a essas mesmas concepções. A mudança e fusão de claves interpretativas e a exploração de ambiguidades talvez nos acompanhem desde o momento em que o homem balbuciou as primeiras palavras ou inaugurou sua primeira galeria com rabiscos na parede de uma caverna. A arte, definitivamente, não é jamais apenas o objeto que nela está contido. É também o retrato de seu autor - sua época, sua cultura e pensamento, seu comentário e testemunho, suas dúvidas, certezas e imaginação sobre o tema escolhido para abordar.
Acostumamo-nos a esse caráter indireto e alusivo da arte; exploramo-lo ao máximo, elevando-a a categorias da excelsitude e do sobrenatural. O homem do medievo não reconhecia nas doze colunas da catedral a simbologia apostólica? Na estrutura tripartida do templo, uma analogia com a Santíssima Trindade? A catedral românica e gótica recompunha em pedra toda a cosmovisão daqueles que a construíam. A produção artística de períodos revolucionários não é, por outro lado, pródiga em imagens do triunfo de ideias sobre outras ? A de regimes autoritários, em cenas de participação coletiva, unívoca? Do fervor religioso das partituras de Bach e Vivaldi ao triunfo Napoleônico retratado por David, Gros e Ingres; da solidez imemorial de um templo grego à efemeridade do instantâneo registrada pelo Impressionismo, acostumamo-nos a compreender a arte como meio de vislumbre do que está para além de nosso domínio. Seja uma ideia, uma certeza, um sonho ou suposição, a obra de arte estabeleceu-se como um meio de transcendência a nossas próprias limitações de força e criação, voltando-nos para fora de nós, em busca do contato com algo superior, não totalmente conhecido.
Como é fácil de se constatar, diante de valores que abrangem a vida humana como um todo - a Criação e a própria intervenção divina na terra - a personalidade de um artista acaba relegada a segundo plano. Afinal, frente a essa busca pelo eterno e infinito, que importância tem o sofrimento de um pintor, a dificuldade econômica de um músico ou a incompreensão dos devaneios de um poeta ? Ao homem por trás do artista subordinado a temas preestabelecidos, encomendados, sobram pequenos espaços para manifestações particulares. Enquanto os que buscam as alturas celestiais ou a glória de um império encontram cargos de corte, encomendas eclesiásticas e honrarias da nobreza, outros dedicam-se mais modestamente à sátira político-social, à farsa, aos autos e comédias populares.
Foi preciso o Romantismo do século XIX para que o eu passasse a ter primazia enquanto elemento constitutivo da arte. Inicialmente como observação subjetiva da natureza e do homem, esse eu evoluiu como visão crítica da sociedade, expandindo-se com o Simbolismo e culminando com o fundo tão radicalmente emocional e indecifrável do Expressionismo. Paralelamente a essa linha de desenvolvimento artístico, progredia a Psicologia, fermentava a Psicanálise e difundiam-se os ideais democráticos pelo mundo ocidental. Isso não significa, porém, que a valorização do eu seja uma invenção desse século e que até então indivíduos vivessem em estado de alienação psíquica. Como demonstram as Confissões de Santo Agostinho e a Vida de Santa Teresa, o eu biográfico e a compreensão da própria situação existencial no mundo já haviam sido elevados a dimensões muito além das comumente aceitas como conquistas dos mil e oitocentos.
O que esse eu tão abordado pela arte do século XIX tem de novidade é, entretanto, a busca da demonstração do indivíduo como um todo, e não apenas visto sob seus aspectos virtuosos, políticos, sociais, religiosos ou físicos, isolados. E para complementar essa busca não concorrem apenas elementos de nossas certezas, crenças, preferências, valores e convicções. Para ela concorre também - e principalmente - o que nos levou a ter em nós essa constituição. Importam nossos sofrimentos, amarguras, tragédias e decepções. O medo, a opressão e fraqueza passam a ser compreendidos como de valor equivalente a seus antagônicos até então preferíveis. Se numa luta há vitória de um é porque há a derrota do outro. E de vitoriosos e suas narrativas a história da arte já estava cheia. A morbidez de uma arte dessa é a sombra de nossa vida, sem a qual simplesmente não existiríamos.
A culminância desse pensamento entronizará o eu como ponto de convergência das circunstâncias imediatas e centro das formulações existenciais. Os fatos do mundo e o destino humano, incluindo sua essência e acidentes, não mais emanarão de Deus - cujo assassinato será atestado por Nietzsche - mas do próprio homem. Os valores já não serão mais absolutos e, consequentemente, a crença neles entrará em xeque. Conhecido nas artes como Expressionismo, o reflexo dessa cosmovisão terá na obra de Vincent van Gogh seu mais notável expoente.
Para um artista Expressionista o sofrimento é imprescindível e van Gogh frustrou-se muito na vida. Louco, pobre, obsessivo e incapacitado para o convívio social, de pregador nos subterrâneos de minas na Bélgica a marchand na elegante galeria do tio rico, esse holandês fez de tudo um pouco. Na tentativa de se estabelecer, caminhou de cidade em cidade. A cada chegada esperançosa seguia-se uma partida conturbada. Tentou por três vezes se casar, uma delas com uma suicida, apaixonou-se por uma prostituta, viciou-se em absinto, contraiu as mais diversas moléstias e terminou os dias em surtos que o levaram à aniquilação da própria vida. Sustentado economicamente pelo irmão, a quem enviava telas na esperança que as vendesse, correspondia-se com outros artistas para os quais dirigia palavras de uma sinceridade inaceitável. Sua pintura também não poderia ser mais sincera, pois alguém só é fiel àquilo de que padece, só demonstra com honestidade aquilo que experiencia.
É preciso deixarmos um pouco de lado o discurso do artista maldito, da vítima de uma sociedade cruel. Esse perfil sob muitos aspectos não se encaixa à personalidade de van Gogh. Um homem que escolheu as telas e tintas sabedor das vicissitudes do meio, conhecidas durante o trabalho na galeria do tio e o contato ininterrupto com o irmão marchand; um homem que desfrutou do aporte financeiro, ainda que pequeno, oriundo das atividades elitistas desse mesmo irmão; um homem que usufruiu a industrialização e barateamento das telas e tintas e que almejava participar do comércio artístico das galerias - uma atividade típica da sociedade burguesa e urbana; um homem desses está longe de corresponder à romantização consagrada no imaginário popular, ainda que tenha sofrido o que sofreu. Ocorre que nossa constituição humana não dá trégua. Como fazemos com as obras de arte, projetamos também nas biografias de seus autores muito daquilo que imaginamos para enquadrá-los em algum arquétipo ou modelo preestabelecido, esquecendo-nos de que o sofrimento e as escolhas de um homem podem ser em grande parte fruto de suas próprias patologias psíquicas.
Assim se estabelece a curiosa relação do espectador com van Gogh. Por mais que odiemos a angústia, a loucura, o fracasso e a incompreensão, somos atraídos pela obra desse estranho holandês. A questão é bastante simples. Esse homem pintou a nós mesmos. Nossa biografia, a biografia de pessoas comuns, de carne e osso, não é composta pelas glórias de Napoleão, nem pela eterna contemplação da natureza, nem pelos milagres realizados por santos 600 ou 800 anos atrás. O que van Gogh faz é remexer nossa sombra Junguiana, escancarar nossos complexos, traumas e recalques Freudianos, expor em público nossos pecados religiosos e idiossincrasias cujo sentido existencial escapa a pobres teorias sociológicas. Em van Gogh, sobre o mundo projeta-se o eu em toda sua plenitude. A realidade se transfigura, as imagens se distorcem, a natureza é reestruturada. Somos todos expressionistas, por mais que nos esqueçamos. Temos todos uma história que influencie nossos atos e percepções, um pensamento e uma filosofia que os embasem, um impulso ou fantasia que os justifique e uma religião particular que nos julgue. O mundo é o mesmo, mas escolhemos - ou somos forçados a escolher - versões de vida diferentes para nele habitar e van Gogh morreu na miséria porque não havia ainda em seu tempo um espaço social para a manifestação de sua versão. Na sala de um nouveau riche parisiense atento às regras de etiqueta não cabia uma tela em que figurasse o pátio de um manicômio, um conjunto de camponeses jantando batatas ou a transfiguração de estrelas em espirais próxima a uma alucinação.
Já não somos arremedos desses burgueses do século XIX; vivemos numa sociedade mais liberal e aberta. Continuamos, porém, a não querer ter em nossa sala de visitas o retrato de uma tragédia familiar, de um parente moribundo ou de nós mesmos em trajes de interno num sanatório. Recorremos então ao que a vitrine social nos permite expor: a abordagem desses dramas  particulares através do caráter indireto da arte. Revestimos nossas tragédias de uma roupagem intelectual, universal e humana, e, se padecemos ou tememos padecer do mesmo sofrimento de van Gogh, penduramos na parede a reprodução de uma obra sua com que mais nos identificamos, conversamos sobre ela com amigos, escrevemos ensaios e apelamos à consciência do interlocutor para a recomposição imaginativa desse drama.
Van Gogh pintou O Jardim do Hospital de Saint-Paul em dezembro de 1889. Fez também uma outra tela, abordando a mesma temática, do mesmo ponto de vista, o jardim do sanatório particular de Saint-Paul-de-Mausole, em Saint-Rémy. Concluiu-a exatos 12 meses após o ataque a Gauguin e o episódio de automutilação que se sucedeu. Poucos dias depois, sofreria dois outros surtos que o levariam a perceber que a vida lhe escapava.
A diferença entre o que está na tela do jardim e uma simples paisagem é um abismo. Essa paisagem não se enquadra em nenhuma categoria; não é bela nem feia, nem pitoresca ou sublime, pois essas classificações são estéticas, e não ontológicas ou existenciais. A angústia de que nos fala o pintor em sua carta a Émile Bernard é exposta aqui com imensa crueza, de maneira que o que esperávamos alcançar com algum esforço intelectual nos toma de assalto, deixando camadas mais profundas de interpretação expostas, sangrando à vista alheia como nossa própria carne viva.
O incômodo provocado por essa obra não é pouco. Imaginamos, ao vê-la, como seria o mundo transfigurado, o mundo cujo referencial, no final das contas, fôssemos apenas nós mesmos - o mundo da sensação e do sentimento totalmente subjetivos, sem a possibilidade de averiguação do que experienciamos com o testemunho de outros. Ficamos estarrecidos com a possibilidade da perda do domínio do conhecimento, com a ideia de que um dia uma árvore e um céu possam vir a adquirir significados aterrorizantes, alterando todo o sentido do mundo como o concebemos e nos deixando isolados nessa interpretação solitária dos fatos. Esse é nosso grande temor. Testemunhamos aqui a realidade como jamais gostaríamos que fosse.
O artista consegue esse feito ora por um empasto de cores, ora por pinceladas soltas nas mais variadas direções - o que leva nosso olhar a percorrer espiralmente a tela e captar nos elementos retratados uma pulsão, uma essência e caráter próprios, revelados pela mutação das aparências, irregularidade rítmica com que se apresentam e pelo entorse das formas. Tudo aqui está vivo e se movimenta, tudo interage, explicitamente, entre si e conosco. O olho que busca o horizonte tem na própria composição da obra um obstáculo, restando-lhe apenas uma fresta para que o alcance, imaginativamente, atrás de um muro. A visada da edificação à direita volta-se, pelo pavimento, em direção ao observador. O artifício que num ícone ortodoxo levaria ao êxtase, traduz-se aqui em tortura. Ao chão árido de tons ocre-avermelhados contrapõem-se copas de árvores em verdes sobrepostos. O piso à direita reflete um céu composto por pinceladas que fazem da aparência uma manifestação exterior de algo cuja natureza ignoramos.
Não há aqui espaço para a estética blasé de aspirantes à nobreza, muito menos para as afetações vazias de intelectualismo ou sentimentalismo burguês. Não estamos diante da alegação de superioridade de um indivíduo frente aos demais, tampouco de alguma harmonia ou integração do mundo a nossos preceitos de raciocínio, beleza e ordem. Pelo contrário, o que experimentamos numa obra dessa é a inadequação do indivíduo à sua condição humana levada ao extremo. Num tronco serrado, atingido por um raio - o gigante sombrio, como um homem orgulhoso, mas derrotado, da carta a Émile Bernard - está Vincent van Gogh. Nesse tronco, serrado, estamos nós.
Para que o Jardim do Hospital de Saint-Paul seja compreendido, é necessário, portanto, que se transforme num produto de nossa própria sombra. Nele, o controle nos escapa, árvores tornam-se flamejantes, o chão borbulha sob nossos pés e à infusão de nossa vida em seres inanimados segue-se nossa própria despersonalização.
Van Gogh talvez seja o único artista cuja relação entre obra e vida desperte no observador esse misto de admiração, horror e compaixão. Porque considerava a arte como um testemunho. E somente a coragem da confissão engrandece um testemunho.

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No início de 1890, van Gogh vendeu sua primeira obra, Videira Vermelha. O jornal Mercure de France publicou um estudo sobre sua pintura e 10 de seus trabalhos foram selecionados para o Salão dos Independentes. O reconhecimento, entretanto, chegava tarde. O artista matou-se em Julho, com um tiro. Seu irmão Theo morreu em seguida, em janeiro de 1891, acometido por uma paralisia. Sua cunhada, Johanna Bonger, dedicou-se então a divulgar sua obra. Inicialmente, Émile Bernard organizou uma exposição com 16 de suas telas. Após sair de uma outra mostra em Paris, agora com 71 obras, o pintor Maurice de Vlaminck confessou a Matisse que gostava mais de van Gogh que do próprio pai.
Em 1901, Hugo von Hofmannstahl, que até então ignorava quem fosse o pintor holandês, registrou numa carta a impressionante descrição de sua descoberta das obras de van Gogh: "Senti-me como se assaltado pelo milagre incrível de sua forte e violenta existência. Cada árvore, cada pedaço de terra amarela ou verdejante, cada sebe viva, cada caminho escavado na colina pedregosa, a jarra de estanho, a tigela na terra, a mesa, a cadeira rústica, era um ser recém-nascido que se erguia diante de mim, saindo do espantoso caos da não-vida, do abismo do não-ser. E eu sentia - não, eu sabia - que cada uma dessas criaturas nascera de uma dúvida horrível que desesperava o mundo inteiro, que sua existência era testemunho eterno do odioso abismo do nada. Eu sentia em tudo a alma daquele que havia feito tudo isso, que com essa visão dava uma resposta para se libertar do espasmo mortal de uma dúvida espantosa."
O estabelecimento definitivo do interesse pelas obras de van Gogh começaria a partir de 1905, quando sua cunhada abriu uma exposição com 473 de seus trabalhos no Museu Stedelijk de Amsterdam e na Galeria Arnold, de Dresden. Os Cubistas e Fauvistas davam prosseguimento, por um lado, às ideias de Cézanne, e por outro, de Gauguin e van Gogh. O homem que havia morrido louco e incompreendido, entrava pela porta da frente da  História.

O Jardim do Hospital de Saint Paul de Mausole na década de 1950

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A carta a Émile Bernard e a descrição de Hugo von Hofmannstahl encontram-se, respectivamente, na Biografia de van Gogh por sua cunhada Jo Bonger e nas Cartas a Theo, lançados pela L&PM Editores

Um comentário:

Unknown disse...

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