terça-feira, 21 de outubro de 2014

Memórias Dispersas


Publicado originalmente no Jornal Copacabana, edição de Agosto de 2014

A família estava animada. Era 1959, meu tio se estabelecia na vida e começava a decorar a casa com telas encomendadas a seu amigo, o pintor Georges Wambach. Titia iria finalmente posar para um retrato, que acrescentaria glamour extra à coleção.

Os meses passavam e desenhos de Ouro Preto, São João del-Rey, vistas a óleo do porto do Rio, paisagens de Fernando de Noronha - titia mostrava tudo aos parentes, menos seu retrato, que nunca ficava pronto. Deduzindo que faltava dinheiro para a encomenda, todos foram deixando de tocar no assunto, até que ninguém mais se lembrava da história.

Um dia o infortúnio rondou a família. Durante o aniversário de bodas de titia, sua mãe levou um tombo e acabou levada inconsciente para um dos quartos da casa, até então mantido trancado. Parecia mesmo que o pior iria acontecer. O médico foi chamado às pressas e logo se acercaram primos, irmãos e uma multidão de convidados para prestar assistência à matriarca.

Foi quando, por descuido, a tragédia se consumou. Enquanto abanava a mãe, titia era vista por todos na tela até então mantida em segredo. Estava ela, ali, vestindo provocante lingerie, acorrentada, estirada num terrível calabouço. Dos pés escorria uma sandália negra, que fazia conjunto a outras, misturadas a um cinturão. Os lábios, de tão vermelhos, ofuscavam até os cabelos, pintados em berrante cor de ouro. Titia havia encomendado um retrato, mas o artista havia feito um imenso nu, com quase dois metros de largura!

As mulheres começaram a gritar, primos discutiam, trocavam tapas e empurrões. Vizinhos e crianças corriam até a casa e eram retirados à força sem entender o que se passava, respondendo com indignação. Ninguém era capaz de imaginar um desfecho para o que acabara de acontecer.

Pois foi aquele mesmo quarto o lugar escolhido por sua mãe para se recuperar, desfrutando por meses a obra disposta garbosamente em frente à poltrona. Cada visita recebida tornou-se oportunidade para todos se descontraírem e rirem juntos do episódio. E assim, pela sabedoria da matriarca, a família refez as pazes.

Georges Wambach faleceu em 1965 e meus tios quarenta anos depois, sem deixar descendentes. Os herdeiros, ignorando a história, acabaram por levar a tela a pregão num tradicional leiloeiro em Copacabana. Espero que quem a arrematou se divirta com essas recordações.



Nenhum comentário: