segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A Crítica de Arte II

Robert Hughes (1938-2012), escritor e crítico de arte

     A crítica é uma atividade paralela à arte que a influencia sem, contudo, a suplantar; que a conduz sem a privar de autonomia; que sem ela não subsiste e, portanto, para ela volta-se com todo afinco. Sua função é antes a de um contraste, a de um elemento alheio à essência a ser examinada, mas que dela participa e tanto lhe encobre quanto evidencia componentes que em sua ausência talvez pouco se distinguissem. Ao que está sob seu contato proporciona nova estima e sentido, possibilita o discernimento entre o fundamental e o supérfluo, entre o falso e o verdadeiro, o bom e o ruim. Seu produto, porém, é uma baliza entre outras, não podendo jamais consistir num parecer definitivo ou absoluto, pois seus componentes e aqueles com que se confrontam são eles próprios inúmeros, mutáveis em sua percepção e desconhecidos em sua totalidade.
          Essa atividade a que damos o nome de crítica é uma grande incompreendida. Útil e valiosa, enriquecedora e contraditória, maltratada e ufanada por seus praticantes, encontra quase sempre a desconfiança ou paixão alheia - o ressentimento ou vanglória do artista, a adesão ou suspeita do leitor; raramente a isenção. Quando lisonjeira, sobre ela recaem suspeitas de favorecimento; quando amarga, de hostilidade e retaliação. Seu grande trunfo provém de seu maior drama, a subjetividade. E, por isso, depende da mesma abertura de espírito - por parte do autor, do artista e do leitor - de que depende a obra nela estudada. É uma atividade, no fim das contas, tão gloriosa quanto ingrata, pois não há obra mais passível de crítica do que a própria crítica e não há artista que desperte mais antipatia do público do que o crítico autólatra, voltado menos para o assunto abordado que para o melindre afirmativo de si.
          Se a boa obra de arte vale mais que a crítica por sintetizar mais elementos, valores, símbolos e evocações do que esta seria capaz de abarcar, a crítica, por outro lado, banha a arte com mais luz, tornando-a inteligível tanto para os não familiarizados quanto para os espíritos ainda indiferentes ou enrijecidos frente ao tema tratado. Através de distintos pontos de vista, aprofunda o horizonte do conhecedor e do estudioso, estabelece comparações com outras obras, com a produção do artista, com sua época e o passado, fomenta o interesse do público pela arte; oferece, enfim, um panorama onde a obra e seu autor sejam enquadrados.
          Que o crítico almeja a influência sobre opiniões e percepções, não é segredo. Também não é segredo o fato de a neutralidade da crítica ser uma falácia em si, pois a própria escolha da obra analisada já consiste em algum julgamento. Mesmo que nessa escolha não haja interferência do autor, uma crítica isenta estará mais próxima à descrição, o que também não deixará de ser crítica, pois partirá do princípio de que uns aspectos merecem ser considerados frente aos demais. O crítico, portanto, deve ter o pensamento contraposto ao de outros, jamais tomado isoladamente. Caso contrário, o repertório de pensamentos sobre a arte se restringe à ressonância de uma única ideia, estabelecendo-se uma ilusão de consenso e unanimidade.
          A crítica vive essa eterna tensão consigo e com seu objeto. Por ser indispensável, sua aceitação pode tanto oferecer ao fruidor a chave interpretativa de uma obra quanto uma receita que, tomada às cegas, desnutre-lhe o espírito investigativo e o abstém do prazer da descoberta. Assim, é imprescindível que o leitor enriqueça cada recorrência ao pensamento do crítico com sua própria experiência, com sua própria ideia a respeito da arte e, sobretudo, com seu próprio testemunho para que, durante a fruição da obra, não se porte como o ventríloquo de um manejador habilidoso.
          As relações entre arte, crítica e público são conturbadas como a de um triângulo amoroso e a dos amantes que se beijam e se estapeiam, ora às escondidas ora à vista de todos. Mas o crítico, o público e o artista, sobretudo os contemporâneos, devem ser sinceros uns com os outros, pois as atividades de que participam são recíprocas, convergem para o mesmo destino - a relação do homem com o mundo - e conduzem todos a virtudes e males semelhantes. Se ao julgar novas ideias o primeiro não teve tempo de absorvê-las em profundidade, o último, por outro lado, pode estar apenas inebriado de uma ilusão passageira. Enquanto isso, ironicamente, o público pode estar fruindo na arte valores que escapam a ambos. É, como no adágio, o tempo o maior amigo e inimigo de todos. Uns desejam salvar ideias produzindo obras; outros, apontando e cultuando as que julgam dignas de adoração.

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