sexta-feira, 4 de outubro de 2013

A Crítica de Arte - I

Retrato do escritor e crítico Gonzaga Duque (1863-1911)
Tela de Eliseu Visconti, Museu Nacional de Belas Artes

     Esse é o primeiro de uma série de artigos a respeito da crítica de arte. Fruto da meditação sobre aulas, cursos, leituras, palestras e da convivência de alguns anos com o tema, as ideias aqui desenvolvidas não configuram uma receita interpretativa. A própria arte, por ser uma linguagem sob inúmeros aspectos em aberto, se encarregaria de invalidar tal pretensão.
          O julgamento de uma obra, a identificação dos valores nela contidos e aos quais se refere, a análise de seu contexto e os instrumentos necessários a sua apreciação tornam-se uma constante tão logo se aprofunde o pensamento sobre a história e razão de existir desse gênero de produção intrinsecamente humano. Como não há julgamento sem que haja referências e critérios, é a esses que os que se interessam pelo assunto devem se voltar. Isso porque no rastro de uma conclusão está sempre o caminho percorrido pelo autor, seja de uma obra, seja de uma crítica: os terrenos pelos quais enveredou, aqueles de que manteve distância, os que ignorou e nos que por mais tempo se deteve. A recomposição desse caminho conduz o leitor às experiências vividas pelo autor, a partir do qual poderá confrontar-se com suas escolhas e pensamento, com o que é por ele conhecido e ignorado, com suas observações e reações - e compará-las com o que ele próprio, leitor e fruidor da arte, conhece e ignora, percebe ou não, com as escolhas e considerações que teria feito no lugar de quem emitiu o juízo ao qual dedica sua atenção.
          O crítico lança sobre determinados aspectos de seu objeto de análise uma luz de determinada cor, de determinado ângulo e determinada intensidade, concordante ou não às lançadas pelo artista, pelo público, pelos meios de comunicação, por governos e grupos de poder, por universidades, colecionadores, mantenedores de museus e galerias. Como se constata facilmente, essa divergência de julgamentos e visões dos fatos e valores nem sempre têm a arte como objeto de glorificação, subordinando-a muitas vezes a esquemas interpretativos em cuja culminância estão interesses profissionais, econômicos, sociais ou ideológicos. Não creio, por outro lado, que exista arte pela arte nem que seja legítima essa tese, pois onde há um homem há outros e, consequentemente, há trocas, há uma economia, uma cultura, há uma história, costumes e instituições. Onde há um homem há também sua psicologia, seus sonhos, crenças, virtudes, grandezas e misérias. Sobre um artista, sua obra, o público, instituições e crítica paira esse complexo de relações, tantas vezes mantido velado. A crítica de arte pode, portanto, também ser tomada como um valioso instrumento para o conhecimento tanto da cultura quanto dos homens que dela participam. Procurar extirpar da arte os valores humanos aos quais ela se refere não conduz a interpretações isentas, elevadas e puras, científicas, mas a abstrações interpretativas incapazes de se referir à multiplicidade de aspectos nela contidos.
          Valores humanos podem ser bons para uns e maus para outros. Obras de arte podem ser ruins ainda que transmitam bons valores. Assim, a má compreensão dessas relações conduz tanto ao niilismo quanto ao solipsismo, tanto ao ódio rancoroso quanto ao moralismo estupidificante. Como toda produção humana, a arte também é passível de uma hierarquização e, para que se estabeleça uma gradação qualitativa, é preciso que se conheçam os componentes tanto de uma obra tomada isoladamente quanto comparada a outras. O desafio nessa comparação é aceitar que os preceitos usados para o julgamento de uma criação podem não ser adequados às demais e, portanto, toda hierarquização acaba dependente de referenciais distintos, com o agravante de neles haver também um coeficiente em aberto, que preenchemos com nossas próprias experiências e ideias, nem sempre coincidentes às de outros fruidores.
          Que isso pareça confuso e perturbador é compreensível. Que um crítico ataque obras por não se encaixarem em crenças e teorias sobre as quais assentaram sua vida e carreira, também é de se prever. Mas o simples fato de podermos não nos identificar com algo valioso para alguém que respeitamos e amamos significa antes de tudo que existe um universo inabarcável entre o maniqueísmo simplista e o relativismo absoluto. Ao invés de representar a impossibilidade de um estudo e análise sinceros da arte, a consciência do jogo de forças envolvidas na produção artística e seu julgamento mune o interessado por essa manifestação tão essencialmente humana de instrumentos que o levam a compreender o quanto esculturas, telas, sinfonias, peças de teatro e obras literárias são importantes não apenas ao homem, mas também à civilização que o transcende nos mais diversos planos: cronológico, geográfico e cultural. Se me pedissem um resumo de minhas conclusões sobre a crítica de arte, eu diria sem hesitar que, antes de tudo, o crítico honesto será sempre aquele que preferir a verdade simples encontrada numa obra a um equívoco refinado em que acreditava até a descobrir.


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