segunda-feira, 10 de junho de 2013

Das Implicações de uma Exposição

Cenas de filmes Fluxus
Acima: Centro:Yoko Ono - Eye Blink, 1999  entre George Maciunas - Artype, 1966
Abaixo: Yoko Ono - One 1965; Jeff Perkins - Shout, 1966; Erik Andersen - Opus 74 Version 2, 1966

          Das exposições a que fui em minha infância e adolescência, sou capaz de reconstituir muitas, nos mínimos detalhes. Lembro de duas em especial, de Dalí e Monet no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, quando enfrentei filas com meu pai para chegar às obras. Eu não entendia o motivo de tanta euforia e publicações nos jornais, nem compreendia, confesso, a quinta parte do que estava exposto. Para mim era tudo uma grande festa, com gavetas surgindo da Vênus de Milo e telas onde se viam metamorfoses e transfigurações. Lembro com espanto da invasão sofrida pelo museu durante a mostra de Monet, quando de ninféias e nenúfares ficavam menos impressões que as das multidões contornando o quarteirão. Havia pessoas sentadas por todos os lados, grupos bebendo uísque e um sujeito tocando uma estranha marcha minimalista no piano. Crianças corriam e gritavam numa sala, entrando e saindo de um tal "jardim de Monet", que não tive coragem de visitar.
          Embora visse muitas novidades e idéias interessantes, foram experiências com a arte tal como eu conhecia, sem grandes decorrências para os pensamentos de um rapaz ainda mais interessado em biografias que nas obras em si. As coisas, é claro, tomariam outro rumo e o marco ocorreu aos 22 anos, quando aceitei o convite para uma exposição que estava sendo pouco divulgada.
          Eu havia acabado de começar a faculdade de arquitetura, ingressava na idade adulta e a história da mostra Fluxus, no Centro Cultural Banco do Brasil, entrou em minha vida assim, de supetão: "É um pessoal do desbunde dos anos 1960, que fazia umas coisas loucas com arte" - disse meu pai. Não hesitei e, chegando ao CCBB, tomei um susto com nomes dos quais jamais tinha ouvido falar: George Maciunas, Gustav Metzger e Vytautas Landsbergis que, descobri, havia governado a Lituânia no período de independência da União Soviética.
          Assim que entrei na sala principal tive minha primeira grande experiência com questionamentos sobre a arte. Foi uma reviravolta. Ficaram para trás o impacto das mostras de Dalí e Monet e as idéias que eu tinha a respeito de exposições, da cultura como um todo e da importância do museu para o indivíduo e a sociedade. Meu pai, embora crítico ao que via, deixava transparecer um entusiasmo fora do comum. Não era à toa. Para ele aquilo tudo era um reencontro com a juventude, com o É proibido proibir e A imaginação no poder, dos anos 60. Para mim foi a oportunidade de me perguntar se o que eu considerava arte não era um campo limitado das possibilidades de criação humana. Não concordei com o caráter panfletário de algumas obras, muito menos com o despeito e arrogância com que os integrantes do grupo se expunham. Mas essa era a visão temporária de um rapaz do início do século XXI, de gosto tradicional, habitante de um país periférico, onde um movimento semelhante jamais existiria ou, se tivesse existido, teria sido por mera importação.
          Em alguns minutos eu caminhava pelas salas rindo da minha confusão sobre o que era arte e o que não era, imbuído da certeza de que as performances e o registro em vídeo deveriam, mas é claro, ser usados em nosso tempo da mesma forma que a pedra, telas e madeira tinham sido usadas, por séculos, como meio de transmissão de idéias. E por que não se usar também um objeto do cotidiano, deslocado, talvez nem tanto, das funções originais e inserido num outro contexto? Descobri assim que, ao invés de tradicional, eu era na verdade um tremendo anarquista: como experiência, toda arte é válida, nem que sirva de anti-exemplo. Se eu julgasse que algo não merecesse consideração, era preciso que, ao menos, esse algo existisse para ser apontado. A delícia era constatar que, apesar de confuso, não considerava nada do que estava exposto como anti-exemplo, nem cometi o erro de tomar o conteúdo panfletário de algumas peças como critério de aferição de qualidade.
          Sofri naquela exposição um mergulho imaginário, uma aceitação de tudo o que via como o contexto de um artista: sua época, intenções, crenças, os objetos de que dispunha, os meios de produção desses objetos, as músicas que ouvia, as paisagens, a política, os compradores, galeristas, as grandezas e misérias da existência. Compreendi que não poderia julgar obras eletroacústicas pelos mesmos critérios que julgava uma tela de Watteau ou Leonardo, nem poderia equiparar um happening a uma escultura, já que haveria mistura de gêneros, categorias e símbolos, ainda que eu não colocasse nesses termos a questão.
          Como estudante de arquitetura, atentei para o fato de que, embora admirador da tradição, se me fosse cobrado o projeto de uma base para a colonização da lua ou de marte, jamais a conceberia a partir de preceitos historicistas e desenharia, em vez disso, o que de mais arrojado viesse à imaginação. Seria preciso levar em conta descobertas no campo das formas, materiais e instrumentos necessários à manutenção da vida em condições adversas. Além de tudo, seria preciso que a obra constituísse um novo marco para a humanidade e evocasse os sonhos de nossa época, não uma seleção de glórias do passado.
          Se minha defesa do historicismo fraquejava, me dei conta também de que não vivia na lua nem em marte, e que ainda julgava a arquitetura gótica condizente com o estado de espírito necessário à contemplação, tanto quanto as fachadas de vidro eram reflexo das transformações econômicas e sociais em curso no interior de arranha-céus. Era o início da compreensão das diferentes simbologias envolvidas nas atividades humanas.
          Eu nunca havia tido esses questionamentos e, durante a exposição Fluxus, olhando objetos numa caixa compondo palavras com a primeira letra de seus nomes, entendia melhor a reação do público ante a expectativa não correspondida por um sujeito sentado ao piano que não executava nada. A obra era aquilo: a expectativa correspondida de uma forma diferente da esperada. Sim, não era uma arte como a de Rodin ou Michelangelo, mas também não era filosofia nem psicologia, muito menos uma ciência como a álgebra ou trigonometria; era outra coisa, classificada como arte pelo simples fato de corresponder igualmente a uma necessidade criativa e intelectual humana.
          Há os que enxergam a arte por aporias e os que preferem a moral ceticista. Uns lançam dúvidas sobre tudo o que a humanidade produziu de elevado; outros apenas rejeitam o que não corresponde às velhas regras de antemão. Estão ambos errados. Mas descobri naquele dia que essas polaridades são necessárias à renovação do pensamento e da própria arte, já que mantêm acesa a paixão pelo que há de bom no passado e pelo que ainda deve ser criado. Isso porque re-equalizam o que um indivíduo tem de tradicional e contestador, fazendo-o compreender o real valor do que deve ser transgredido e do que merece ser conservado. Da mesma forma que a aporia e a moral são partes da filosofia e da religião, também em arte há essas fronteiras não delimitadas, paradoxais, entre o que é e o que não é, entre o que é e o que pode ou não vir a ser.
          Saí da mostra Fluxus mais rico, instigado, repleto de idéias e dúvidas com as quais, até então, havia tido contato apenas em trabalhos acadêmicos e cadernos de cultura dos jornais. Rememoro sempre aquela experiência e a confronto com o que descubro, para me livrar de esquematismos e preconcepções. Só não me livro é da saudade daquele dia. Por isso recorro a ele como testemunho da abertura necessária a essa manifestação humana imprescindível, a que chamamos Arte.

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