sexta-feira, 21 de abril de 2017

Paulo Francis 20 anos depois



Até 1997, quem se interessava por cultura tinha nos artigos e aparições na tv de Paulo Francis um programa garantido. Ele era amado pelos que vislumbravam a existência para além das amarras. Ele dispensava a subserviência ao lugar-comum; desprezava o culto à incompetência, à sagrada esterilidade do intelectual graduado. Ele indicava a saída aos que lutam para sobreviver no labirinto em que se perde constantemente o pensamento brasileiro. Era arrogante. Gostava de se dizer porta-voz do que era bom, superior. Seus comentários atiçavam legiões de ressentidos que o liam para, com muito esforço, encontrar um erro que lhes permitisse parecer melhores que ele. A patrulha era incessante, não dava trégua. Como todo pensador independente, vivia em meio a hordas de desafetos que não escondiam a humilhante relação de parasitismo.

Os vícios de Francis eram muitos, mas nada com que não se pudesse lidar. Bastava aceitar a redução do tema a duas ou três premissas, o corolário de citações, o desprezo por algum objeto e, pronto, você concordava com ele. Francis explorava com destreza a dinâmica da informalidade, do vocabulário conciso, e com isso abria caminho para as assertivas demolidoras que o tornaram célebre. Grande parte do sucesso angariado estava na facilidade com que unia o insulto à alta cultura, a sensatez ao absurdo, a literatura à linguagem falada. Você o lia e dava por certo que ele era detentor de informações privilegiadas, circulava em meios exclusivos, e podia, graças a ele, rir das nulidades que se projetam nas peculiaridades do ambiente nacional. 

Francis deixou um vasto legado de ensaios, artigos, críticas, textos políticos, memórias e romances que podem ser divididos em fases. A primeira é a da crítica de teatro e dos primeiros textos de análise política e cultural. Depois houve um desenvolvimento para o gênero ensaístico, a atualização da temática com a mudança para os Estados Unidos, a entrada na tv e a guinada à direita que estabeleceu sua figura no imaginário popular.

A opinião consolidada com os anos foi a de que sua produção mais antiga, da década de 60 e início de 70, difere tanto da de sua última fase a ponto de parecer de outro autor. Apesar de cara aos antigos colegas, que continuaram à esquerda e julgavam que havia decaído, e ao público da direita, que via a mudança como sinal de evolução, a tese não se comprova. Quando se analisa sua trajetória para além da mudança de orientação política, seus textos acusam, desde o início, as idiossincrasias exacerbadas na velhice. Já nos primeiros anos, davam a impressão de que o mundo caminhava a passos largos para superar o que até então se considerava como civilização. Indivíduos personalizavam instituições inteiras, autores se dissolviam em processos históricos e países eram englobados em contextos de que seus habitantes e governos sequer faziam ideia. Suas análises eram uma espécie de revisionismo teórico assentado em fofocas de bastidores, de maniqueísmo com iconoclastia e conclusões baseadas em pontos de vista tomados por interpretações definitivas. 

Basicamente, o que caracteriza essa produção inicial são, no estilo, a densidade e estruturação argumentativa e, nas idéias, o viés marxista e o culto a uma constelação de personagens que o tempo mostrou serem de importância relativa. Como todo escritor ansioso por mostrar a que veio, Francis lançava mão do que havia de melhor no jornalismo, de maneira que até hoje há muito a se aprender nesses textos: a assimilação e concatenação de fatos, o delineamento de panoramas, a riqueza de referências, a síntese e insights em pequenas frases. O problema é a militância política a que se prestavam. Seu pensamento era extremamente contaminado por discussões teóricas típicas do provincianismo brasileiro. Ainda hoje para grande parte dos que se pretendem intelectuais, pouco importa que a realidade demonstre o contrário do que dizem. Se a teoria determina uma coisa, é a realidade que deve ser subjugada, amputada até encaixar-se no modelo que criaram. Francis, então Trotskysta, levaria para o túmulo esse vício de formação, apenas transfigurando-o em novos cacoetes. Antes que a experiência demonstrasse a invalidez de uma de suas proposições, já havia outras na fila, o que torna fácil encontrar distorções em suas análises. Esse viés da revolução permanente também perduraria até os últimos dias manifesta na aversão a argumentos alheios. Militante é presunçoso por natureza: parte sempre do princípio de que tem a solução para o mundo e que esse defeito é na verdade o que o eleva acima de tudo e de todos. Junte-se a isso o status de crítico cultural, o dinheiro, bons relacionamentos, acesso a revistas e jornais e o resultado será explosivo.

O que mais se pode argumentar em defesa dessa produção das primeiras décadas é o domínio do gênero ensaístico, perdido na fase final. O leitor atento identifica ali os epítomes, os juízos a priori, o fato selecionado para representar o conjunto na fundamentação, o tom de testemunho, enfim, a personalidade por trás do que é transmitido. As análises eram escritas numa linguagem moderna, despojada e informal cultivada pelos integrantes do Pasquim, mas alavancadas por uma inteligência ímpar. Além da narrativa de episódios ignorados pelo público brasileiro, havia muito improviso, referências e citações que, aliadas à ousadia estilística, conferiam credibilidade às opiniões. Diante da facilidade de comunicação, do brilhantismo petulante, era impossível desconfiar que ele não dominasse a fundo o que abordava. O jornalismo, diga-se de passagem, era outro. O espaço atualmente dedicado ao desenvolvimento de temas e opinião nem se compara ao que havia nos cadernos de cultura dos jornais e revistas, que se instituíram como um universo à parte. Os leitores sempre recortavam matérias para reler e consultar. Textos tornavam-se clássicos. Quem viveu os anos 80 acompanhou os estertores desse mundo. Nos dias de hoje metade das páginas é ocupada por fotografias; os textos são curtos, de conteúdo superficial. As quatro últimas décadas foram as da estagnação e míngua do jornalismo que, quanto mais se profissionalizava, mais se uniformizava, mais se tornava formalista e estéril, a ponto de alcançar a irrelevância cultural. Francis, que já era a antítese a todas as regras, acompanhou a transição até o prenúncio da débâcle, quando nos anos 90 a própria decadência do meio tentou negar-lhe o título de jornalista para enquadrá-lo como cronista. Foi uma forma fracassada de estabelecer limites à atividade do homem mais lido no país. Com o episódio, Francis trocou de empresa e ainda aumentou o salário, que já era o maior da categoria. Hoje seria banido da mídia, assediado por patéticos manifestos virtuais de repúdio, processos e outras formas pouco veladas de censura.

Apesar da inegável qualidade, esses textos mais antigos não fariam dele alguém a ser lembrado. O Francis que ficou, o amado e odiado, e o que importa pela proximidade a problemas ainda atuais, é o gestado na década de 70 e consolidado no início da seguinte, quando, tendo fincado raízes nos Estados Unidos, passou a trabalhar para a Tv Globo. Talvez, chegado o amadurecimento, tenha percebido o quanto determinado tipo de jornalismo político era efêmero. Talvez tenha percebido que, passados dois ou três anos, ninguém mais se interessa em revisitar episódios da vida de um secretário de Estado. Passado um tempo, revelações tidas como demolidoras se mostram de pouca consequência, previsões dadas como certas não se concretizam - e há uma cobrança pessoal nisso. O escritor jovem pode vender a rebeldia promissora; o maduro carrega o ônus daquilo que pôs em jogo. Por esse aspecto, a guinada de Francis à direita parece ter sido a etapa de um processo inevitável. Como muito do mundo que havia vendido desmoronara, não restava alternativa senão a ruptura. A experiência capitalista e democrática lhe havia demonstrado a miséria de ditaduras socialistas, verdadeiros Estados policiais onde o homem é rebaixado aos graus mais inferiores de sobrevivência. O convite para um quadro no Jornal da Globo também era irresistível e para as aparições seria preciso se reinventar. 

Francis estabeleceu então para si a persona de um velho inglês de fala arrastada. Sua figura era rígida, parecia desconfortável. O tempo curto travava as pautas, a princípio restritas à política, mas mesmo assim as análises ganhavam pouco a pouco contornos pessoais. Com o tempo, enriqueceu a interpretação. Dotou-a de ares sarcásticos, como a de quem enxergava o mundo do alto de uma esnobação afetada às raias da caricatura. Dessa forma, o que na boca de um qualquer pareceria gafe, na sua ganhava status de grande sacada e profunda esculhambação. Ampliou então a pauta. Passou a abordar comportamento, cultura, até chegar a temas absolutamente insólitos. Um dia falava sobre pintura, no outro sobre a vida de Brooke Shields, depois revoltas em bairros negros americanos e, em seguida, espetáculos da Broadway. Às vezes a transmissão acabava e você não acreditava que ele havia sido capaz de dizer metade do que havia dito. Ele era amargo, saudosista, deslumbrado, rebelde, conservador. Podiam acusá-lo de tudo, menos de falta de talento. Pessoas o imitavam repentinamente na rua, estudantes copiavam-lhe o traquejo, humoristas faziam quadros inspirados em sua figura e no final não havia mais fronteira entre o Paulo Francis jornalista, escritor, e o personagem que havia criado. Esse era seu grande segredo: transitava entre diferentes personagens, entre diferentes linguagens, públicos, perfis psicológicos e graus de compreensão cultural. Enquanto outros se preocupavam com a aparência, com a técnica da voz e em seguir as regras da televisão, ele estabelecia as próprias regras, os próprios critérios, revirava tudo com enorme inteligência e determinava o que mais, além das notícias, deveria ser considerado. Em programas de entrevistas isso desnorteava os participantes, pois ninguém sabia qual seria sua posição com relação aos temas e ficavam todos à mercê das inesperadas reações e rompantes de interpretação. O teatro, vale lembrar, era paixão de juventude, e as décadas de jornalismo, um lastro inestimável.

Paralelamente à tv, Francis continuava a escrever. Seu texto ganhava dinâmica e concisão; os temas, seguindo a linha dos comentários no Jornal da Globo, se ampliavam, perdiam o vício teorético e passavam a ser menos influenciados pelo Brasil. Quem lê os artigos em cronologia percebe claramente essa mudança. O ex-ensaísta trotskysta havia colocado os pés no chão, enxergava a realidade diante dos olhos, percebia em si o ranço, a estreiteza e inutilidade das discussões locais, do deslumbre nacional com a própria clausura. A história demonstra o quão bom é para o brasileiro fincar raízes no exterior. O indivíduo descobre que vivia tolhido, submetido a uma atmosfera em que tudo é dificultado, onde tudo é proibido, onde todos inserem tudo em categorias compatíveis com os limites da própria visão. No Brasil acredita-se que, tirada a corrupção, no restante do mundo vive-se sob os mesmos critérios de amizades, apresentação social, leituras e estudos, que o estado psicológico e emocional dos indivíduos é equivalente ao nacional. Mas pergunte a um estudante americano, francês ou alemão quantos livros ele lê por ano. Preste atenção em seu vocabulário, no repertório intelectual e expressivo. Faça o mesmo com um brasileiro. A diferença é brutal. A postura de Francis diante disso passou a ser de uma prepotência que se acentuava até culminar nas demonstrações de desprezo ao país no programa Manhattan Connection, da recém-instituída tv por assinatura, para onde havia levado o público fiel, nos anos 90. Por vezes, o desconto que se dava por estar velho e rabugento era insuficiente para aplacar o mal-estar que se estabelecia pela enxurrada de ofensas. Mas Francis era Francis, sua inteligência, o homem bem vestido, bem sucedido, viajado, experiente, rompido com a esquerda, e na semana seguinte todos esperavam o próximo artigo, o próximo programa, a próxima aparição.



Décadas depois


Passadas duas décadas de sua morte, fica evidente que o que alavancou o sucesso de Francis foi o completo isolamento em que vivia o Brasil. Ele soube se valer como ninguém do abismo que havia entre o país e a Europa e os EUA para se colocar como intérprete do que, de fato, importava no mundo. Assistir suas entradas, quase à meia-noite, no Jornal da Globo, era garantia de se ultrapassar o conjunto de limitações de um ambiente provinciano para, enfim, estabelecer um contato real com o centro dos acontecimentos. Apesar de rápidos, seus comentários não eram como as demais transmissões, conduzidas pela burocracia de um correspondente qualquer. Ouvi-lo era elevar-se acima do chão, libertar-se do emocionalismo niilista que, no desespero, iguala tudo por baixo. O próprio nome dado a sua coluna nos jornais também expressava essa ideia: Diário da Corte. Ele estava na corte, o leitor não. Basta lembrar que nos anos 80 não havia internet, nem tv a cabo, e a Rede Globo era uma das poucas estruturas capazes de manter uma comunicação mais ou menos digna com o resto da civilização. Não havia fontes alternativas, e sim muita boataria, achismo e palpites. Comparado com a vida de hoje, o isolamento era desesperador. Jornais e revistas, ainda que superiores aos atuais, publicavam análises sobre informações já filtradas por agências de notícias e a dificuldade para se estruturar uma visão da realidade que não fosse distorcida por bairrismos era enorme.

A imprensa televisiva que havia proporcionado a ascensão de Francis era, porém, o endosso dessa tragédia. Bastava um cantor de rock dar as caras por aqui para a repórter dirigir a estúpida pergunta: "O que você sentiu quando pisou no Brasil?". Além do entrevistado, ninguém mais percebia o equívoco da premissa. Os leitores de jornais, mais cultos que o espectador de tv, também não faziam sua parte buscando oxigênio nos periódicos estrangeiros, que acabavam restritos a diplomatas e indivíduos naturalizados. Chegar à banca e encontrar um sujeito comprando o New York Times ou Daily Telegraph era coisa rara. A pessoa se tornava até mais gentil, na esperança de arranjar um emprego. A devastação era agravada sobretudo pelo fato de o brasileiro, mesmo o mais letrado, ter sempre sido monoglota, ter sempre lido pouco e usado o inglês vez ou outra, a contragosto, em relatórios no trabalho. Francis, para impressionar esse público, se dizia leitor de 8 periódicos internacionais, o que constituía um aval para as opiniões dadas sobre os mais variados assuntos.

Se atualmente o cenário não é bom, naquelas condições o horizonte de referências culturais do brasileiro era mais do que miserável. As opiniões eram equações de idênticos componentes, baseadas na visão de meia-dúzia de autores conhecidos e admitidos pelo establishment tropical. A consulta aos jornais da época deixa isso escancarado, bem como a relação de livros publicados e referências bibliográficas de trabalhos acadêmicos. O mercado editorial era paupérrimo, as pessoas tinham pouquíssimo dinheiro e, enquanto o mundo estava em outra, os americanos torrando os bolsos com Reagan, a Inglaterra colhendo os frutos da era Thatcher, a União Soviética definhando, no Brasil havia filtro sobre filtro do que se podia pensar, do que se podia ler, do tipo de julgamento que podia ser emitido. Como se não bastasse a catástrofe econômica, a estagnação, inflação e desemprego sob um inacreditável governo Sarney, ainda por cima discutiam-se teses e doutrinas, em vez da realidade diante dos olhos. Era-se contra ou a favor do Keynesianismo, havia-se decorado ou não a objeção de alguém ao Fordismo e acusava-se sempre o oponente de ser um pseudointelectual. Poucos reparavam o quão deprimente era isso tudo e o quanto havia de afastamento da lucidez no fato de pessoas inexpressivas do terceiro mundo condenarem políticas como o Plano Marshall ou os gastos militares norte-americanos na guerra fria. O mundo atravessava a maior revolução tecnológica da história e o Brasil apostava alegremente na proibição da importação de computadores como instrumento de incentivo à indústria nacional. Nos Estados Unidos erguiam-se arranha-céus metálicos a 400 metros de altura e, no Brasil, defendia-se uma siderurgia estatal obsoleta, incapaz de produzir perfis para uma construção de dois andares. Acreditava-se em mitos como o de que a arte e arquitetura moderna nacionais haviam sido as melhores do mundo, que tudo do Brasil era admirado e estudado, quando, na verdade, em qualquer livro de arte do século XX descobre-se que nomes nacionais eram citados en passant, em duas ou três linhas. É verdade que nas revistas estrangeiras havia presença mais significativa de artistas nacionais, em boas matérias, mas havia também centenas de milhares de outras, igualmente boas, sobre inúmeros outros criadores do mundo todo, sem qualquer indicativo de que os brasileiros merecessem maior atenção. Não é desmerecimento, apenas constatação.

Apesar de viver nos EUA, era esse o país para o qual Francis escrevia e do qual era fruto. Nesse universo de restrições, uma opinião distante do lugar-comum era recebida como jóia rara. Francis expunha sem pudor toda a pequenez e inconsistência dos ídolos de barro, cuspia em falsas reputações. Exagerava, sem dúvida, mas quando a balança pende absurdamente para um dos lados, é preciso impor-se radicalmente em favor do outro e o Brasil sempre evolui pelo que vem de fora. Francis defendia a abertura econômica e, quando o país se abriu, cresceu. Quando voltou a se fechar e a fazer acordos errados, foi novamente ladeira abaixo. Também defendia que, para se chegar a algum lugar, era preciso abandonar a presepada, a bateção de tambor, a idolatria do precário. Ele, carioca, simplesmente via que, enquanto o Rio de Janeiro se afundava cada vez mais na demagogia e expatriava gente qualificada, São Paulo seguia rumo próprio e se tornava cada vez mais rico e civilizado. Hoje, com a internet, pode-se obter algum alívio para a opressão da barbárie. Ainda que se tente vender o bacharelismo e a prostituição de consciências como normas de conduta, existe, à disposição de quem quiser, um universo inabarcável de publicações que põem abaixo a trama de alucinações caras à intelectualidade local. Existe livre acesso a ideias de pensadores sérios que, naquela época, eram banidos por qualquer indivíduo intelectualmente fracassado mas detentor de algum poder sobre os meios de comunicação, editoras ou postos acadêmicos. Por maiores que sejam as limitações, as possibilidades de sobrevivência hoje se diversificaram e capilarizaram. Mas não sirva isso de consolo. Quem revolve a lama sai sempre respingado.



Fragilidades e verdades das críticas


Os ataques a Francis foram sempre muito primários, frutos dessa cultura formalista e asfixiada. Em vez de o confrontarem com argumentos, detratores buscavam erros de gramática e ortografia para invalidá-lo como escritor ou alguma contradição entre diferentes textos para desmerecê-lo como opinador. Diziam que escrevia "por dinheiro", deixando em aberto as inúmeras acepções da expressão. O ressentimento era evidente. Queriam apenas tomar-lhe o lugar, calar a voz que acusava a mediocridade reinante. Outra imputação despropositada surgida a certa altura foi a de plágio, o que a inteligência prova nunca ter praticado. Isso porque, como bom articulista, era excelente leitor e incorporava a todo instante figuras e artifícios expressivos de outros autores. Fazia alusões, citações, enfim, referências que, de tempos em tempos, acabavam exploradas por desafetos pelo simples fato de serem desconhecidas por parcelas do público. A compilação desses supostos plágios chegou a render um obscuro livro cujo conteúdo é em grande parte ocupado pela grafia do som de risadas, como se isso bastasse para convencer o leitor de alguma coisa.

Nem é preciso muito esforço para se perceber que a busca de erros de concordância e regência é o único recurso dos incapazes de invalidar as ideias contidas num texto. Francis errava, evidentemente. Escrevia vários artigos por semana e às vezes se perdia, divagava narcisicamente sobre si, ia parar longe do assunto principal e retomava o prumo nas linhas finais com uma conclusão que poderia ter sido antecipada. Às vezes expunha o raciocínio de forma truncada e abandonava desenvolvimentos, denunciando, com isso, pressa na entrega dos trabalhos. Mas, como ganhava em inteligência e em geral escrevia muito melhor que qualquer um de seus críticos, raramente acusavam-lhe essas falhas, restando o apelo nada convincente às minúcias gramaticais. Atualmente, com a destruição até mesmo da norma culta da língua, não poderiam mais atacá-lo por esse aspecto, considerado elitista pela nova onda de estupidez reinante.

Com relação à mudança de opinião, também é preciso ser muito tacanha para defender que o conhecimento e o julgamento de um indivíduo que lida com a cultura sejam imutáveis e cristalizados. Quem realmente se dedica à informação e análise, seja política, seja científica ou cultural, está suscetível ao confronto com uma gama de possibilidades de interpretação muitas vezes contraditórias para o material que tem em mãos. Francis lia um livro e deixava-se imbuir pelo universo do autor; aludia a personagens, traçava paralelismos, escrevia um texto e, na semana seguinte, após a leitura de mais três ou quatro títulos, aludia mais e mais às novidades, desconcertando todos com enxurradas de citações. Dependendo do estado de espírito do leitor, o processo podia ser recebido como um irritante culto solipsista, no qual predominava não o trabalho, não o desdobramento de uma opinião, e sim a vaidade do jornalista. Egocêntrico, Francis alimentava a mítica do gênio sobre si, do homem que vivia intensa e criticamente o seu tempo. Por isso, diante de seus artigos, cabia a cada um avaliar o que merecia mais atenção, se a análise e narrativa ou sua tentativa de imiscuir-se entre protagonistas. Mas seu grande pecado acabava sendo sempre a negação da crença preguiçosa de que as verdades se estabelecem por consenso. Ele se regozijava por falar o que pensava, pela facilidade de angariar admiradores com o que conhecia e inimizades entre os que invejavam sua posição e viam as próprias misérias escancaradas aos olhos do público.

Infelizmente, são poucos os capazes de identificar os critérios adequados para o julgamento de um assunto. São poucos os que percebem a obviedade de que o conhecimento de um novo fato enriquece a possibilidade de avaliação dos demais, principalmente dos anteriores. A grande maioria dos que se vendem como pensadores no Brasil não procede assim e utiliza o método qualitativo inverso, sem perceber o equívoco de se levar para o resto da vida uma primeira opinião como parâmetro de julgamento das subsequentes. É um paradoxo que muitos dos que se orgulhavam de ser "obras em construção" e "pessoas de seu tempo", acusassem Francis de mudar de pensamento, de negar um dia o que havia escrito no anterior. Não percebiam que, além de demonstrar apego singelo a conclusões, eram elas mesmas a negação do que pregavam. Mas os anos passam, personagens mudam e o problema persiste. Quem não se depara diariamente com esses tipos não merece ser chamado de brasileiro.

Um problema grave de Francis, pouco percebido fora da imprensa, era o de que jornalistas, que em tese têm acesso privilegiado a fontes, acabam se informando através do material publicado no próprio jornal onde trabalham, ou em outros que replicam notícias das mesmas agências. Havia na imprensa, como continua a haver em menor escala, uma cultura auto-referencial, na qual Francis vivia imerso e contaminado. Como esse diagnóstico só podia ser feito por jornalistas, que não apontariam os vícios da própria profissão, a acusação de que ele muitas vezes apenas comentava o que saía na mídia estrangeira, desconhecida por aqui, era feita apenas na boca pequena, nunca em meios oficiais. Passados trinta anos, essa crítica, que renderia análises depuradas de seus textos, continua obliterada pela reedição dos apelos à moralidade e acusações de machismo e preconceito racial, que ele fazia questão de nem responder.

Outro problema, esse mais fácil de ser identificado, era o costume de estabelecer opiniões a partir de um apanhado de outras. Era evidente quando Francis não havia lido um livro ou havia feito uma leitura superficial de um artigo, já que comentava não a obra, mas uma referência ao autor, uma história de terceiros, e, em seguida, inseria o tema em outro assunto de que tinha domínio. O recurso era corriqueiro, principalmente na televisão. Era preciso ignorar totalmente a matéria ou admirá-lo muito além da conta para não reparar quando isso acontecia. Bastava conhecer alguns capítulos do livro ou as ideias do artigo para descobrir quando os comentários consistiam apenas em desconversa. Apesar disso, o malabarismo acabava minorado pelo brio persuasivo que alimentava a expectativa por se ouvir o que mais ele tinha a dizer.

Francis, que sonhava ser romancista, também jamais foi bem sucedido nesse gênero. Nos thrillers que deixou, a concatenação de referências resulta em sínteses históricas e intelectuais de algum interesse, mas as digressões e relatos convergem forçosamente para a instituição de si próprio como paradigma de seu tempo. O empreendimento é descaradamente pretensioso, condenado ainda por cima por uma obsessão com o período militar que explora um pano de fundo desgastado pela cafetização que o tema sofreu nas últimas décadas. Aqui, o desejo de se auto-glorificar se revela não como antítese da indústria da vitimização que o sucederia, e sim como uma expressão alternativa dos piores defeitos de sua geração. Por isso, mesmo para seus fãs nunca foi difícil aceitar que esses livros tivessem pouco ou nenhum valor e que seu resultado cultural tenha sido nulo.



O epílogo sem protagonismo


Se as críticas a Francis raramente iam além de sua personalidade, a mais importante, que faz jus ao que importa num intelectual, acabou deixada em aberto com sua morte. Francis, que havia feito a carreira assentado na imagem de conhecedor imbatível, inexpugnável; Francis, senhor da palavra e dono de informações privilegiadas; Francis, que dizia que o indivíduo deve ser humilhado pelo que desconhece, deixou a vida sem compreender por que a política tal como havia conhecido era solapada a cada eleição. Ignorava o que estava por trás da degradação do país; ignorava que, nas escolas, alunos eram em poucos meses adestrados a louvar o que ele havia demorado uma vida inteira para descobrir que não prestava. Francis ignorava a face obscura da pós-modernidade. Ignorava o processo de emasculação coletiva, o enfraquecimento do indivíduo desde a pré-alfabetização, o marketing do bom-mocismo, os livros que doutrinam para a subserviência ao Estado.

O ex-trotskysta, autor de ensaios que apontavam para a instauração de uma classe dirigente revolucionária, morreu sem compreender que o esquerdismo tal qual praticara na juventude havia sido minado não apenas pela democracia capitalista a que aderira nos anos 80, mas também pelos ex-colegas que haviam se atualizado, apostado tudo em outros disfarces e se tornado discretos, sorrateiros. Francis não compreendia o sentido último do globalismo, da censura politicamente correta, da tomada de instituições e destruição de valores. Não compreendia de onde haviam ressurgido e se reorganizado as forças que, para ele, jaziam mortas sob os escombros do muro de Berlim. Não compreendia isso porque, em plena década de 1990, vivia mergulhado em paradigmas de sua geração, sem perceber que mantinha um discurso insignificante para as demais. Acreditava que Wagner e Gershwin eram respostas evidentes à cultura pop, sem perceber que esse era um debate insólito para jovens que olhavam ao redor e tinham como opções de vida o ambientalismo, a música eletrônica e o movimento gay. Francis não havia esquecido o que defendia nos textos dos anos 60 e 70 sobre a importância do intelectual para os rumos da sociedade, mas era incapaz de se dar conta de que havia sido excluído desse rol. Circulando entre parcelas moribundas do poder, era considerado pela maioria como alguém já totalmente alheio ao processo político.

Não há quem se mantenha muito tempo nessa posição. Seus textos de meados dos anos 90 demonstram o completo desnorteamento das análises, que só não resultavam em naufrágio pelo lastro que carregavam. Como opinador, estava à deriva. Continuava forte e altivo, mas atirava para todos os lados, concentrava baterias em alvos errados, perdia munição em inutilidades. Acreditava que seria lido e admirado por quem era; que ainda vigoravam os sentimentos de classe e temor aos jornalistas, capazes de mantê-lo a salvo das acusações que fizesse, mesmo as sem provas. Hoje, passadas duas décadas de sua morte e sofrendo o país outra reviravolta, podemos pensar em como reagiria se tivesse escapado ao altar em que terminou sacrificado. 

Esse homem que tantos tentaram e ainda tentam imitar foi produto de uma época e de um talento individual irrepetíveis. O jornalismo de outrora não existe mais e a educação brasileira das últimas décadas deu origem a tipos de personalidades nas quais os valores representados por ele encontram pouca ressonância. Francis era o homem que havia feito uma história, que ganhava bem, era bem relacionado, levava uma vida de elite e frequentava a alta cultura no centro do mundo. Havia na sociedade admiração por indivíduos assim, uma admiração perdida pela instilação contínua do ódio à livre iniciativa, do ódio ao mérito, ao sucesso econômico e à cultura de qualidade. O coitadismo e o enfraquecimento da vontade tornaram-se normas de conduta para quem mais se beneficiaria do abandono dessas amarras.

Francis não foi pensador nem filósofo; foi, como sempre dizia, jornalista de opinião, um jornalista bem sucedido numa atividade que passaria duas décadas sufocada pelas misérias do politicamente correto e pela ascensão de grupos cujo único sucesso foi a destruição do pouco que havia de cultura superior no país. Como todo liberal e conservador de então, acreditava piamente que a esquerda jamais chegaria ao poder; que o dinheiro e a religião manteriam o eleitor pobre no cabresto. Percebia o declínio vertiginoso da inteligência local mas, entre inúmeras manifestações de pessimismo, no fundo apostava ingenuamente em velhas fórmulas e que, no final, o bom senso prevaleceria. 

Aos que o admiravam, ficou a lição de que não adianta imitá-lo nem tentar copiar-lhe o estilo. Ser Paulo Francis é viver o que Paulo Francis viveu, tomar as decisões que tomou e, principalmente, cultivar fontes de informação como ele cultivou. Jornalismo é antes de tudo fonte, é informação privilegiada, que ninguém mais tem. Não há jornalista que se faça em casa, solitário, que analise fatos a partir de notícias filtradas e já publicadas, sem alguma proximidade aos protagonistas. Não há jornalista que viva de simular a exterioridade alheia, sem frequentar a cultura e o poder. Da mesma forma que seus críticos fracassaram pelo ataque a seu aspecto externo, nenhum copiador jamais conseguiu levar adiante o Paulo Francis conhecido pela tv, que era, sobretudo, um personagem. Qualquer um percebe que o verdadeiro Francis está na fala dos que lhe eram próximos, na narrativa de casos e relatos de outros jornalistas, de amigos e da mulher. Era esse o homem que importava, o verdadeiro Francis, que antecedia aos textos.

Quanto aos detratores, ficou mais que demonstrado que o ódio a Paulo Francis foi sempre o ódio à liberdade de pensamento e expressão; foi sempre o ódio daqueles que vêem expostas suas próprias misérias e pequenez; foi sempre o ódio daqueles que, por inveja, almejam destruir no outro aquilo que jamais terão coragem nem competência para realizar em si. Mas um homem livre sempre valerá por cem, por mil, por milhões de escravos voluntários, condenados à burocracia da mesmice. É por isso que, passadas duas décadas, esse insurgente continua a ser lembrado.


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