domingo, 23 de março de 2014

Ron Mueck no MAM

Youth, 2009
        Foi difícil chegar lá. Eu já havia esperado um bom tempo sob o sol para atravessar a Rio Branco que, afetada pelo desmonte da Perimetral, operava em mão dupla. O calor estava realmente forte e o ar, seco, mas o cafezinho e a loja de design me resgataram desse conflito existencial urbano. Mais uma vez vi o banco Quito, que ainda vou comprar. Lembrei-me de outras idas ao museu, de conversas que tive naquelas mesas com pessoas de todos os cantos do mundo. Onde estarão? - eu me perguntava. Não por ali, certamente. Era uma 5a feira e a quantidade de visitantes só aumentava a expectativa pelo contato com as obras de Mueck - o primeiro, pois só o conhecia dos livros e programas de tv.
          Quando visito um museu procuro driblar as vicissitudes a fim de instituir em mim uma percepção que escape à da realidade imediata. No caso do MAM, tomo um café e circulo entre as colunas, observando o jardim de pedras enquanto sinto os estranhos efeitos do som e do vento próximo ao vão central. Estimulo assim os déja vus; cultivo então esse substrato de experiências capazes de me transpor para um conjunto de referenciais próprios, do qual alguns critérios participam mais do julgamento e compreensão do que outros. Para que essa passagem ocorra é preciso, porém, que eu tenha antes olhado o edifício um pouco de longe - não o bastante a ponto de ter deixado de notar a impressão das fôrmas de madeira no concreto, mas de uma distância tal capaz de ter me proporcionado a abstração do restante da cidade e ao mesmo tempo permitido ser absorvido pelo universo de ideias da arquitetura. É nessa primeira experiência que ouço as notas dos contrabaixos, prenúncio de que o estado me sobrevirá. Mais adiante, depois do café e já tendo suscitado as recordações, começo a ouvir os violoncelos e violas. Quando, dentro do museu, vejo as primeiras obras, a melodia reversa nas flautas confirma que estou enfim imbuído do novo espírito e o Concerto para Orquestra, de Bártok, estabelece minha participação integral do lugar.
          Apesar do pouco apreço por barulho e multidões, gosto de museus cheios. Dão a impressão de que o interesse pela arte anda em alta e que as obras contam com a identificação do homem comum, esse às-vezes-herói que não teme manifestar-se contra exorbitâncias teóricas. Se há experiência interessante, é a de caminhar tendo estabelecido esses patamares de fruição: o das obras em si; o do que se vê e se ouve a respeito e o da música que rege esse estado. Parece que assim testemunho, além da arte, também a mim desde dentro e de fora, perdido em devaneios entre tantos indivíduos perdidos nos seus.
          Reconheci-me, portanto, na obra de Mueck. Sei que tudo o que estava na mostra era a antítese de um museu destinado mais ao Concretismo que a qualquer outra coisa. A escultura hiper-realista não se coaduna àquele espaço e de cara tudo me pareceu extremamente deslocado, desde o gigantesco Casal sob um guarda-sol até a Máscara n.2, provável autorretrato do artista. O pequeno número de peças expostas, nove apenas, também não correspondeu às expectativas. Mas o vazio sempre incita nossa imaginação por sua causa, ainda que estejamos convencidos da necessidade de área livre para abrigar o afluxo de visitantes a uma mostra de apelo inigualável.
Man in a Boat, 2002
          Mueck aborda, basicamente, esse lugar-comum que se tornou o mundo contemporâneo. Pessoas mergulhadas em si voltam do supermercado após o trabalho, passeiam com a namorada e são esfaqueadas em algum beco por ladrões de telefones. O jovem de Youth olha a própria ferida ao mesmo tempo como Cristo e Tomé, vítima incrédula da violência a ser explicada pelo chavão de uma ideologia qualquer. Cremos todos no algoz metafísico - os reacionários, na índole criminosa do rapaz; os progressistas, na sua imolação pelo sistema opressor. Junto ao mezanino, uma senhora posava com Natureza Morta, o imenso frango pendurado no teto. Era uma dona de casa que, no intervalo das fotos, confessava jamais esperar encontrar ali o que via diariamente numa panela. Não havia ideologia que resistisse.
          As figuras de Mueck não riem. Enfastiadas por doses cavalares de niilismo, parecem não compreender o sentido de seus atos nem se importar com o julgamento alheio. São anti-estéticas. Em Young Couple, o rapaz que se desviriliza ao curvar-se ante a mocinha histérica é o mesmo que, visto de trás, tenta subjugá-la pela força, agarrando-lhe o punho. Em Man in a boat a curiosidade de um sujeito esbarra na incapacidade de reconhecer a própria feiura como possível objeto de atenção. Sua nudez pálida não é escondida sequer pelos braços, cruzados apenas para equilibrar o corpo arqueado.
  Essa é a arte da solidão e do desdém, uma arte que retrata o isolamento tanto dos personagens quanto do observador que no fim das contas despreza a si e a esses indivíduos. Ron Mueck não oferece respostas, não promete nada; apenas recompõe o mais fielmente essa estupidez coletiva manifesta em interesses passageiros, banais. E quase todos que olham essas pessoas de resina buscam verossimilhanças físicas, apenas isso, sem jamais desconfiar que são os verdadeiros objetos de uma ironia atroz.
Young Couple, 2013
          Derivado singular da Pop Art, o Hiper-realismo se estabeleceu na pintura com Richard Estes e Denis Peterson e mais recentemente passou por inclementes releituras como a de Gottfried Helnwein. A linguagem caiu no gosto popular e teve a interpretação reduzida a mero capricho técnico por quem pouco ou nada compreendeu de sua essência provocadora. Foi graças a Duane Hanson que a tendência se manifestou mais explicitamente na escultura,  levando todos a questionar o intuito da glorificação de pessoas que jamais se interessariam por arte. Faxineiras, donas de casa com carrinhos de supermercado e bobs nos cabelos, pessoas comendo sanduíches, transportadas com cuidado e asseguradas em alguns milhares de dólares, passaram, pelas mãos de Hanson, a ser tão reais quanto as plastificadas modelos de grifes de luxo. Mas hiper-realismo por hiper-realismo, fico com as mulheres de John de Andrea. Também esbarro com dezenas delas diariamente, nas ruas, na praia ou restaurante. São belas e se não se interessam por arte, ao menos não pretendem saturar minha vida com prosélitos da crítica social.
          Bartók nada tem a ver com Ron Mueck e meu déja vu naquela tarde foi de pouca utilidade. Reconheci-me na obra do escultor, é verdade, mas não como um de seus personagens, pois consistem todos em paradigmas de uma vida que tentam me impingir e contra a qual luto a cada instante. Pode ser que minha evocação musical consista numa reedição do mito de Pigmaleão e que eu me esforce por restaurar imaginativamente através de sons os ideais abandonados que deram origem àquele museu. Saí de lá sem qualquer dúvida entre a assepsia da abstração e o imperativo de uma arte que retrata o mundo de forma inferior à que vejo. Cheguei em casa e pus o Concerto de Bártok para tocar.

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