sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Desenhos de Oscar Niemeyer

Projeto de conjunto residencial para Botafogo, Rio de Janeiro


A exposição dos desenhos de Niemeyer no Paço Imperial é uma boa oportunidade para se conferir de perto o processo criativo do maior de nossos arquitetos. São esboços, projetos preliminares, memoriais justificativos, materiais de palestras, maquetes - maquetes, aliás, de excelente qualidade, dispostos confortavelmente no edifício histórico. Em meio à fartura, porém, o visitante, que pode operar computadores com sensores de movimento, assistir vídeos, entrevistas e documentários, não deixará de notar um importante detalhe: a ausência de fotografias atuais, a cores, das obras.

É que o caráter utópico da arquitetura moderna exige em nossos dias a abstração de dimensões inteiras da realidade. Se em 1950 ou 60 a figura humana estava no interior desses edifícios como símbolo do porvir, da cultura em transformação, atualmente representa a falência do velho ideário futuro a que os projetos serviram. As promessas de um mundo melhor, mais limpo e justo, desmoronaram, carcomidas pelo vício, pelo conchavo, pela ânsia de um poder cada vez mais invasivo, centralizador, e já não há mais como julgar isentamente nosso Congresso, nossos palácios do Jaburu, Itamaraty e Alvorada à sombra de sua trajetória, dos que os ocuparam e ocupam. Tirem de Brasília os políticos, removam o mobiliário pré e pós-moderno que descaracteriza as obras e ainda assim permanecerá maculado o vislumbre restaurado de um paraíso pretérito.

Recorramos então à ótica virgem do momento em que foram concebidos, quando o desejo pelo novo não decorria das desilusões que hoje nos atormentam, mas da possibilidade mesma de se transformar o sonho em realidade. Exploremos ao máximo a capacidade da arquitetura de ser interpretada apesar dos propósitos a que serve e serviu, já que a pureza a que essas obras em si se referem vale mais que os vícios dos que as utilizam. Fiquemos com as antigas fotografias, com filmagens de inaugurações, textos, esboços e projetos privados.

Projetos privados, sim, porque nem só do ranço populista e burocrático depende o julgamento do arquiteto. Niemeyer é capaz de sintetizar num pequeno desenho todo um estilo de vida; de em poucos traços estabelecer toda uma concepção de relações humanas. É o que se constata, por exemplo, no projeto para um edifício residencial em Botafogo, da década de 1970. A diferença de níveis entre as áreas de circulação e estar, aliada às paredes e divisórias curvilíneas estabelece uma compreensão múltipla de espaços que se interpenetram em zonas difusas, sem fronteiras. Quando empregados em interiores, esses elementos são contrapostos a um teto plano e contínuo, capaz de garantir unidade ao ambiente. Em exteriores, o céu aberto e suas variações acentuam a horizontalidade da composição, banham as paredes de luz homogênea e o chão atua como elemento reflexivo. Quem olha atentamente a perspectiva desenhada pelo arquiteto repara que a disposição do horizonte está elevada, de maneira que o observador não seja o protagonista da cena, e sim contemplador da relação de seus ocupantes com o espaço. Também não há referências alheias às que poderiam ser concebidas em sua prancheta, seja a uma tela antiga, a um retrato ou móvel de família. O homem ideal, habitante desse projeto, abriu mão do passado, dispensou a afeição a velhos objetos e vive uma assepsia da razão que comporta apenas ousadias formais. Se isso é bom ou ruim, cabe ao juízo de cada um.

Também não há expostos no Paço projetos de execução, aqueles com cotas, níveis, especificações técnicas e de materiais. Não. Apenas o processo de elaboração conceitual e formal, apenas o da concepção plástica e discursiva. Mas se a arquitetura nunca se resumiu ao lápis na mão e ideias na cabeça, a mostra não deveria contribuir para corroborar a ideia do gênio solitário, senhor da totalidade do projeto antes mesmo que este chegasse ao papel. O que há exposto é parcela ínfima e selecionada de cada trabalho, ou seja, uma etapa em que o arquiteto já havia tomado contato e meditado sobre o material com que iria lidar.

Projetos sempre têm e terão início numa encomenda, num orçamento, num programa e terreno, nas limitações de circulação e acessos, num conjunto de imposições alheias à livre fantasia. De contingências é que se faz um homem. São contingências que demonstram sua capacidade singular para absorvê-las e superá-las, enquanto as transforma em virtudes. O grande arquiteto não tem na contingência um obstáculo a uma proposta, à sua visão de mundo, e a obra de Niemeyer nascia em grande parte em concomitância à escrita dessas especificidades no papel, mas não em sua totalidade. Isso não representa demérito à exposição, que é bastante rica e expressiva, apenas um esclarecimento sobre a real localização desses desenhos nas etapas de elaboração dos projetos até que fossem aprovados, detalhados, desenvolvidos tecnicamente e, enfim, construídos.

Um destaque da mostra são as grandes perspectivas para o Hotel Nacional, em São Conrado, Rio de Janeiro. O lugar é paradisíaco e a cidade perdeu muito com a falência do empreendimento. O prisma elegante e enigmático convive há décadas com tapumes, com a invasão e depredação.

Talvez seja mesmo melhor que exposições de arquitetura não contem com fotografias ou apresentem apenas algumas da finalização das obras. Porque fotos revelam sempre um momento específico, seja áureo, seja da decadência de um edifício. E é da natureza da arquitetura uma atemporalidade que paira acima das vicissitudes. A realidade, porém, precisa ser conhecida, para que possa ser abstraída em suas dimensões justas e adequadas.

.

Nenhum comentário: