quinta-feira, 16 de junho de 2016

Exposição Você está aqui


A visita à Exposição Você está aqui é uma excelente oportunidade para conhecer obras pouco divulgadas do acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Para quem frequenta o lugar há tempos, também é a chance de reencontrar antigas paixões, presentes em mostras de quinze, vinte anos atrás, mas mantidas na reserva à espera de ocasião propícia à exibição.

A mostra tem curadoria de Amauri Dias, Anaildo Baraçal, Daniel Barreto, Euripedes Junior e Laura Abreu e, entre estudos marcados pela visão acadêmica de Vítor Meirelles e Rodolfo Amoedo, traz também telas de Gustavo dall'Ara, Jorge Guinle e Helios Seelinger. O visitante tem a satisfação de encontrar uma obra de Ivonne Cavalleiro, cujas paisagens de Copacabana ainda esperam a devida atenção. Saturadas de luz, elas retratam o eterno meio-dia, sol a pino, e aquele bucolismo que ainda podem ser experimentados em cantos reservados do famoso bairro carioca.

Yvonne Visconti Cavalleiro - Trecho da Rua Siqueira Campos

Como a mostra não é voltada apenas às outrora denominadas artes maiores, e sim a um conjunto variado de criações relacionadas ao espírito do Rio de Janeiro, há, entre demais peças, uma Poltrona Mole representando o design de Sérgio Rodrigues, uma pia datada do século XVII e tida como remanescente do Morro do Castelo, e um grande desenho de Le Corbusier, feito na ocasião de suas palestras na então capital da República, em 1936.

No canto esquerdo da Sala Bernardelli, o visitante tem a surpresa de se deparar com um conhecidíssimo personagem carioca: o Orelhão - que, pela disposição num museu, suscita estranhas reações. Talvez pela crise, talvez pela desculpa que ela proporciona, o movimento do museu anda baixo, quase apenas de turistas e alunos que cumprem tarefas escolares. E das pessoas que passam pelo antigo abrigo telefônico, projeto de Chu Ming Silveira, poucas param e nenhuma parece estimar aquela que por três décadas foi a peça mais emblemática das ruas da cidade.

Isso ocorre porque a superexposição de um objeto faz com que a vista não mais o perceba. O fato de um simples Orelhão estar entre obras intelectualmente elaboradas e de importância histórica mais significativa também se configura, aos olhos de alguns, como mera provocação, à qual não querem responder. Parece que essa parcela dos visitantes leva demais em conta o fato de o objeto não estar no interior de uma instituição qualquer, mas do conservador MNBA. Já para os jovens, que cresceram no mundo dos celulares, o motivo da presença era outro: o de retratar a aparência anterior desse elemento de priscas eras. O modelo é antigo e a maioria jamais usou um ou sequer sabe operá-lo. A geração atualmente na faixa dos 30 anos não os usa desde a década de 1990 e não faz mesmo ideia de onde se compra um cartão para as chamadas - se é que ainda funcionam com cartão. Eles funcionam?

Enfim, o Orelhão é o mesmo, mas sua percepção varia imensamente, conforme cada um que o olha.

Como as demais criações humanas, sejam telas, esculturas, composições musicais, filmes e edifícios, uma peça de design sofre julgamentos apaixonados, desde a defesa mais ferrenha até o completo desprezo e rejeição. Tudo depende do caleidoscópio de evocações suscitadas. De recordações de infância a associações com momentos bons ou ruins da vida, passando pelo desejo de se vincular ou afastar dos valores associados a ela, é fácil se constatar por que uma peça pode ser importante para a história e ainda assim nem queiramos vê-la em nossa frente.

Talvez, no caso do design, esses julgamentos sejam mais extremados do que nas outras artes, dado seu caráter utilitário e sua maior presença em nosso dia-a-dia. Enquanto mobiliário urbano, o Orelhão se tornou absolutamente inútil e mesmo os mais saudosistas são incapazes de preferi-lo ao aparelho que carregam no bolso. Alguns exemplares ainda resistem, povoando esquinas com propósitos bastante diferentes dos originais. Servem apenas como suporte para anúncios de profissionais do sexo, colados lado a lado, ao estilo das serigrafias de Warhol.

Orelhões podem ser amados pelo que têm de insólito, mas se os respeitamos enquanto criação artística, é impossível não nutrir repulsa a tudo mais a eles relacionado. Representam o passado de subordinação a um monopólio e a uma concepção obsoleta de tecnologia e da sociedade. Quem dependia da telefonia pública os odiava, pois em 90 por cento dos casos os aparelhos em seu interior não funcionavam.

Mas não é esse o poder da arte: fazer algo perdurar apesar do que de pior a ele estiver relacionado? Fazer esse objeto valer apesar da objetividade? Querendo-se ou não, o Orelhão é uma peça de nosso design e tem lugar garantido na história. O tempo sempre dá à forma um novo sentido.




Outras obras que despertam interesse na exposição são a escultura A Carioca, de Rodolfo Bernardelli e a aquarela Rio de Janeiro, Capital da Beleza, de Bruno Lechowsky. A proximidade das obras se deve certamente ao fato de Lechowsky ter participado do chamado Núcleo Bernardelli, iniciativa de artistas livres que, nas décadas de 1930 e 40, se inspiraram na renovação das artes operada pela geração anterior, àquela época representada pelos irmãos Bernardelli. A paisagem de Lechowsky mostra a Copacabana de 1939, quando despontavam os primeiros edifícios do bairro. A grande dimensão da obra e as largas pinceladas comprovam a licença com que o pintor explorava a linguagem da aquarela, muito embora a temática permaneça bastante tradicional, como de praxe entre os integrantes do Núcleo. Já A Carioca, de Bernardelli, é dos primeiros anos do século XX. A concepção em movimento, com o dorso voltado para a esquerda acompanhado de movimento do quadril, confere à figura uma graça toda própria. Se à primeira vista não estabelecemos uma familiaridade com as feições da personagem, logo percebemos que ao artista interessava mais o tipo físico, o volume e proporções corporais do legado português.


Também de Bernardelli pode ser visto o modelo para o monumento ao Barão de Mauá, que realizou verdadeiro périplo desde que foi instalado na praça em homenagem ao industrial, na zona portuária do Rio. A escultura ressalta a honra do empreendedor, chapéu à mão, cabeça desnuda, gesto elegante e contrapposto de um corpo fatigado.

A resignação do Mauá é também a nossa, diante de uma realidade bastante diferente do otimismo outrora cantado pela cidade. Mas a tragédia do carioca de hoje é ainda maior, por viver o outono sem ter conhecido a primavera. Quem tiver dúvidas, que conte nos dedos o número de visitantes de exposições.


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