segunda-feira, 24 de junho de 2013

A destruição da Assembleia

Palácio Tiradentes, sede da Assembleia Legislativa, após o cerco de 17 de Junho
fotografia de Fernando Quevedo

        Assumo a culpa. Também destruí a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Destruí como pude. E o que do edifício restou, foi por incompetência minha. 
        Não, não peguei em pedras nem atirei pedaços de pau à fachada. Não risquei paredes, tampouco arranquei o calçamento da entrada. Naquele 17 de Junho, na hora do cerco, eu assistia a uma aula do outro lado da cidade e nem sabia do conflito. Mesmo assim, destruí a Assembleia.
          Sentado no carro, ouvindo rádio, eu havia descoberto pouco antes que em Brasília o Congresso estava sitiado. Milhares queixavam-se do governo. Exigiam melhor saúde, educação, mais segurança. Demonstravam indignação com a violência ocorrida no dia anterior, quando policiais em motos  haviam atropelado um jovem manifestante. A imagem não sai de minha memória. Eu queria estar lá, queixando-me também. Nem tanto pelos 20 centavos no aumento da passagem de ônibus cuja revogação era exigida, mas pela truculência com que o rapaz havia sido tratado.
          Pelo rádio, ouvi então que ameaçavam invadir o Congresso. "Quem sabe esses governantes não acordam para a realidade do país?" - eu pensei. E discursei inflamado entre amigos antes da aula. Dizíamos que éramos a favor de atitudes fortes, que vivíamos uma grande injustiça. Não podíamos aceitar calados tanta arbitrariedade. Recursos públicos haviam sido despejados na construção de estádios de futebol enquanto pessoas morriam em filas de hospitais. Éramos unânimes. Era preciso ir às ruas, era preciso gritar!
       Eu também destruí a Assembleia. Não invadi o edifício nem ataquei a polícia, tampouco cogitaria enfrentar esses homens e mulheres de farda cujas vidas ainda valem mais, muito mais, do que o salário que lhes é pago e do que qualquer queixa minha a seu respeito. Nesse mesmo dia, na hora do almoço, eu havia trocado olhares com uma moça no restaurante. Só depois reparei que ela portava arma e tinha o distintivo da polícia na blusa. Eu me casaria com ela. De verdade. À cerimônia convidaria amigos, distribuiria beijos e cumprimentos, confraternizaria-me com antigos desafetos. Pediria que me perdoassem velhos defeitos e daria um prolongado abraço em cada um, desejando-lhes saúde e felicidade. Mas, mesmo assim, destruí a Assembleia. 
          Destruí porque na véspera, ao ver o rapaz atropelado, sonhei com vingança. Sonhei que um dia alguém iria enfrentar os demagogos e dizer-lhes uma grande verdade. Sonhei que esse alguém os faria provar do próprio veneno; faria-os sofrer do mal que, talvez sem saberem, impingem a tantos. Pelo rádio descobri que não havia apenas um desse alguém, mas milhares deles em frente ao Congresso, de punho cerrado, prontos para a vingança. A hora havia chegado.
          "Que comecem !" - pensei. Não confessei para ninguém que dessa forma havia atirado minha primeira pedra. O que seria atingido, no momento não pude prever mas depois, terminada a aula, via pela televisão homens atacando o edifício da Assembleia Legislativa no Rio de Janeiro. Esses homens eram eu. Quebrávamos vidraças, de preferência as de cristal. Riscávamos a fachada com ódio; textos sem nexo, é claro, escritos enquanto partes de mim se ocupavam em incendiar o prédio e gritar palavras incompreensíveis. Alguém correu com uma grade, atirando-a contra o portão. No trajeto, um pedaço da coluna de granito foi arrancado. Um sujeito acabou ferido por estilhaços da luminária; estávamos agora com um rasgo profundo na cabeça. Afogado em sangue, logo recebia ajuda de outros eus, enquanto atacávamos a lateral do velho Paço. Um outro eu, irreconhecível para mim, havia fugido após espancar um policial. Tinha uma blusa amarrada ao rosto, não pude identificá-lo, mas ainda assim sentia as dores dos tiros de borracha que havia levado.
          Sou testemunha. Eu estava na faculdade, assistindo a tudo pela televisão,  mas o ódio pelo atropelamento do rapaz no dia anterior havia me levado às ruas, sem querer. E assim eu havia destruído a Assembleia - sem querer. Falei então com amigos e conhecidos que haviam destruído o prédio histórico, também eles sem querer. E porque não haviam querido, acreditavam não haver testemunhas que os pudessem incriminar. Diziam que os destruidores eram outros e não os representavam já que eram cidadãos pacíficos, obedientes à lei e à ordem. Um deles me disse até mesmo que à tarde, enquanto almoçava, havia trocado olhares com uma moça no restaurante, sem reparar que ela portava arma e tinha o distintivo da polícia na blusa. Pensara até em casamento!
          Todos eram unânimes. A destruição era um verdadeiro absurdo e como não haviam participado do cerco, a culpa era de outros. Sentiam ódio do governo e confessavam que haviam sido a favor de atitudes fortes. Mas haviam apenas exigido melhor saúde, educação, mais segurança. Confessavam que haviam demonstrado indignação com a violência sofrida pelo jovem no dia anterior; que a imagem não lhes saía da memória. Orgulhavam-se de terem comparecido, muitos apenas imaginariamente, às passeatas. Nem tanto pelos 20 centavos... Confessavam que haviam feito discursos inflamados para amigos antes da aula, pois viviam uma grande injustiça e não podiam aceitar calados tanta arbitrariedade. "Quem sabe esses governantes não acordam para a realidade do país?" - haviam pensado. Mas a culpa pela destruição da Assembleia era de outros. A artimanha psicológica era infalível! Negar a imprevisibilidade dos atos que haviam apoiado os eximia de qualquer culpa.
          Porém, ainda que durante o cerco à Assembleia os apoiadores dos protestos estivessem do outro lado da cidade; ainda que jamais em suas vidas tenham erguido a voz a um policial; ainda que jamais tenham removido qualquer pedra das calçadas; ainda que jamais tenham pensado em atirar lixo contra o patrimônio histórico; ainda que se dediquem à família, aos estudos, ao trabalho; ainda assim, os apoiadores dos protestos deveriam assumir a responsabilidade pelos que saíram às ruas naquele 17 de Junho. Porque não se substitui a injustiça por mentiras.

Nenhum comentário: