terça-feira, 16 de julho de 2013

Pedro Nunes e a Descida da Cruz - Um Ensaio




"Depois disso, José de Arimateia, que era um de seus discípulos,
ainda que oculto por medo dos judeus, rogou a Pilatos que
lhe deixasse levar o corpo de Jesus. Nicodemus, o que tinha ido
primeiramente à noite ter com Jesus, foi também, levando uma
composição de quase cem libras de mirra e de aloés. Tomaram,
pois, o corpo de Jesus e envolveram-no em lençóis com
aromas, segundo a maneira de sepultar usada entre os judeus."


João XIX:38-40


     O que uma tela pode nos revelar de sua época? O que um artista é capaz de legar para além do tema de que foi incumbido? Será ele um mero produto de seu tempo - das normas e preceitos alheios? Será um condenado a desobedecer a si e a todos? Ou sujeito ao drama de conciliar desejos e certezas pessoais com a visão dos que julgam lícito a seu trabalho ?
          Pedro Nunes foi um pintor do século XVII, representante da última fase do chamado Maneirismo português. De sua produção restaram poucas obras - algumas, apenas atribuições. Sua vida foi marcada por uma importante viagem de estudos e, no regresso à terra natal, pela consequente adequação do aprendizado ao ambiente que o cercava. Não foi gênio nem figura-chave da arte europeia. Seu nome tampouco conheceria o triunfo póstumo, o reconhecimento da História, pois a névoa em que os séculos o envolveram apagou até mesmo o que de fato se sabia a seu respeito. Sombreado por homônimos ilustres como um inquisidor, um cientista afeito à navegação e um pintor do barroco espanhol, acabou tendo as obras arroladas em inventários alheios. Sua criação mais importante, o painel da Descida da Cruz, era identificada ainda no século XX como da lavra de Francisco Nunes, seu filho. O equívoco persistia desde 1696, quando Félix da Costa Meesen, em Antiguidade da Arte da Pintura, destacou-lhe as qualidades mas confundiu-se quanto à atribuição. Esse panorama perdurou até que recentes pesquisas, notadamente as de Vítor Serrão, aclarassem dúvidas e trilhassem os poucos rastros desse artista digno de maior apreço. 

          Nascido em 1586, Pedro Nunes viveu em Évora, região do Alentejo, no período compreendido pela União Ibérica, quando a morte de Dom Sebastião em Alcácer Quibir levou Portugal à absorção pela coroa espanhola. Por esses anos a perda da independência deixava aos portugueses consequências dos conflitos do reino vizinho, mergulhado em guerras contra a Inglaterra e os Países Baixos. Enquanto a Espanha apoiava os irlandeses católicos contra os ingleses, estes aliavam-se aos Países Baixos para saques como o de Cádiz e as investidas sobre a Grande y Felicísima - a armada filipina. As terras recém descobertas na América eram alvo dos holandeses, que tinham na Companhia das Índias Ocidentais e no estabelecimento de Nassau em Pernambuco a manifestação mais clara de seus objetivos. Pedro Nunes não chegou a ver a Restauração portuguesa com a coroação de Dom João IV, em 1640. Morreu três anos antes, aos 51 anos de idade.
          Filho de um viticultor, o futuro artista eborense foi inscrito pelo pai aos 15 anos na oficina do pintor Manuel Fernandes. O contrato, datado de 1602 e registrado por um tabelião local, estipulava que o mestre daria ao aluno "de comer e de beber, e calsado e cama em que durma, e todo outro mantimento corporal necessario e honestamente lhe fazer tam boa companhia que com elle possa aturar, e por tal maneira lhe ensinará o dito ofício de pintor bem e verdadeiramente como elle mestre sem lhe esconder cousa allguma". Durante os estudos, as vestes do rapaz seriam garantidas pelo pai - que não pôde assinar o contrato. Era analfabeto.
          Évora, por esse tempo, era palco de uma aristocracia poderosa, fruto das prolongadas estadias reais anteriores à União Ibérica. A economia local era dominada pela burguesia mercantil e forte presença de confrarias laicas e mosteiros que fomentavam a produção artística sob as diretrizes do Concílio de Trento. Seguindo o antigo costume medieval mantido no reino português, as artes eram encaradas como ofício, passadas de pai para filho ou entre pessoas de alguma forma relacionadas. Essa prática pode ser atestada na biografia de inúmeros artistas de então. Cristóvão de Figueiredo (? - c.1540), pintor, era cunhado de João de Ruão (ativo entre 1510 e 1572), escultor e arquiteto; Garcia Fernandes (? - c.1565) era casado com a filha de uma irmã de Jorge Afonso (c.1470-1540) que, por sua vez, era cunhado de Francisco Henriques (? - 1518), todos pintores. Como o aprendizado se passava em oficinas e havia no interior dessas uma hierarquia, somos levados a concluir que para a produção das obras concorriam as mãos dos aprendizes, conforme as habilidades já adquiridas dos mestres.
          Outra prática em voga era a das parcerias. Além da divisão dos trabalhos de acordo com a natureza das atividades, como entalhe e douração de molduras e a criação de pinturas e esculturas, havia também o costume de se contratarem vários profissionais para, em conjunto, elaborarem diferentes obras. Documentos de 1533 e 1534 atestam que para a decoração da Igreja de Ferreirim houve um desses consórcios. A parceria de Cristóvão de Figueiredo, Gregório Lopes (c.1490 - 1550), Garcia Fernandes e Cristóvão de Utreque os tornaria, assim, conhecidos pela alcunha "Mestres de Ferreirim".  A criação, no entanto, não ficava totalmente ao encargo da imaginação dos autores. No caso da pintura, era corrente o acerto de quais figuras iriam compor as obras encomendadas, principalmente quando se tratasse de representações sacras, pois os artistas deviam seguir os preceitos da iconografia e decoro, estipulados pela Igreja.
          Esse cenário mais próximo ao medieval que ao das transformações renascentistas já dava, em fins do século, sinais de prescrição. Após reivindicações de Francisco João, artista ativo entre 1563 e 1595, o Senado da Suplicação liberou oficialmente os pintores da cidade da subordinação às hierarquias corporativas e seus estatutos. Mas, como sabemos, pelas mesmas razões que os homens elegem um santo a venerar, elegem as leis a cumprir - e leis e obrigações da cultura estão longe de coincidir com as dos tribunais.
          Em 1606 nosso jovem pintor concluiu os estudos na oficina de Manuel Fernandes. Que tipo de ensino terá recebido? Terá trabalhado com o mestre no retábulo-mor da Igreja da Misericórdia de Arraiolos, como suspeita Vítor Serrão? O único documento remanescente, o depoimento de uma viúva para o Santo Ofício datado de 1655, indica que Pedro Nunes partiu em 1606 para Roma. De fato, em 1609 há registros de um pintor português de nome Pedro em San Lorenzo in Lucina, Roma, mas documentos oficiais relacionados a sua estadia italiana só aparecem em 1613, nas atas da Academia de São Lucas. O motivo? Pouco nobre: estava ausente. Talvez porque trabalhasse longe, talvez porque auxiliasse Annibale Durante na decoração da residência do cardeal Scipione Borghèse, no Palácio de Montecavallo. São conjeturas.
          Novamente surge a dúvida: o que terá Pedro Nunes aprendido, dessa vez, no seio da cristandade? Por que sua obra não revela influências de artistas como Michelangelo, que meio século antes provocara profunda impressão ao compatriota Francisco de Holanda, autor de um tratado de pintura? Por que não absorveu a liberdade dos Carracci, ou o movimento e observação psicológica de Guido Reni? Terá desprezado a força expressiva de Caravaggio e seus ecos em Orazio Gentileschi? Terá preferido os moldes do velho Rafael por uma identificação de temperamento?
          A semelhança de caráter com o mestre de Urbino parece explicar essa predileção. Um português costuma expressar-se em lirismo condoído, em melancolia serena. O espírito lusitano raramente tem na arte a manifestação de uma tragédia, de um drama explícito. Quando muito, a lamúria, o lamento pelo irremediável - de que Rafael se afasta menos que Michelangelo. Mas as orientações do Concílio de Trento referentes à produção de imagens certamente foram determinantes para seu conservadorismo. Os documentos conciliares estabeleciam que as imagens sagradas não deveriam ser pintadas ou ornadas de "formosura impudente" e que não houvesse nelas "nada fora de ordem ou despropositado e improvisado, nada de profano e nada de desonesto, uma vez que à casa de Deus convém a santidade". Desse período romano de estudos resta apenas um Retrato de eclesiástico segurando uma caveira, datado de 1614 e atualmente no The Bowes Museum, Inglaterra. De fatura tradicional, em semi-perfil, o personagem destaca-se do ambiente, tendo ao fundo uma janela por onde se vê a cúpula da basílica de São Pedro. A pose é natural, porém rígida. Não há detalhamento anatômico e o panejamento, sóbrio, atinge mesmo o esquematismo na região toráxica. Apenas a cabeça e a mão direita estão à mostra, além da insinuada dobra do braço esquerdo sob a manga das vestes.

Pedro Nunes - Retrato de eclesiástico segurando uma caveira, 1614

          Em 1615 o pintor está a caminho de casa e passa uma estadia em Barcelona, onde há registro da execução de painéis, hoje perdidos, para a capela de San Jordi, do Conselho da Catalunha. Chegando a Évora e não tendo esquecido o costume, casa-se então com a filha de seu antigo mestre, Manuel Fernandes, e com ele dedica-se, entre 1618 e 1620, a uma série de painéis para o altar-mor da igreja do mosteiro de N. Sra dos Remédios. As obras são de uma devoção contida e serena, com figuras em adoração, destinadas mais à catequese que ao arrebatamento. Há, contudo, num dos retábulos onde é retratada a Virgem cercada por enfermos, um personagem que nos chama a atenção pelo pathos dissonante. É um mendigo, provavelmente - um mendigo que nos dará uma chave para a compreensão do repertório imaginário de nosso pintor e das práticas artísticas da época.


Pedro Nunes - Painel para o altar-mor da Igreja do Mosteiro de N. Sra dos Remédios

Déja vu
      
        Assim como em nossos dias, havia naquele tempo um mercado, ainda que incipiente, para obras de arte impressas com finalidade de estudo ou simples deleite. Bíblias e missais cumpriam importante papel para essa difusão de imagens, pois, ornados com gravuras da iconografia católica, permitiam a um grande número de pessoas o contato com criações que jamais veriam diretamente. Artistas de todo o mundo cristão tinham acesso a essas imagens e nelas se inspiravam, o que propiciou o estabelecimento de uma padronização iconográfica da Igreja e tornou as cenas sagradas identificáveis não apenas pelos atributos tradicionais, mas também por modelos de composição e disposição dos personagens nas telas.
          Isso explica o fato de podermos encontrar o mesmo mendigo retratado por Pedro Nunes numa outra obra, A Esmola de São Roque, pintada pelo italiano Annibale Carracci em 1595. De uma gravura reversa de Francesco Brizio a partir do original de Carracci o artista português selecionou um personagem que julgou melhor se afigurar à composição de sua cena.

Annibale Carracci - A Esmola de São Roque, 1595

Francesco Brizio - gravura reversa de A Esmola de São Roque, de Annibale Carracci, c.1602

À esquerda: Pedro Nunes - detalhe do painel para a Igreja do Mosteiro de N. Sra dos Remédios
À direita: Annibale Caracci - detalhe de A Esmola de São Roque, 1595

          Inspiração semelhante pode ser atestada no painel da Anunciação, onde é nítida a influência da criação homônima de Ticiano. A mesma prática está ainda mais evidente numa Última Ceia, pintada para o refeitório do mosteiro de Santa Helena do Monte Calvário, cuja disposição de personagens, poses, vestimentas e objetos segue a da iconografia em voga desde o Renascimento.

À esquerda: Pedro Nunes - A Anunciação
À direita: Ticiano - A Anunciação

Pedro Nunes - Última Ceia -  refeitório do mosteiro de Santa Helena do Monte Calvário

          Essa inspiração em gravuras, no entanto, não deve ser confundida com falta de criatividade nem com a mera cópia da produção alheia. Assim como ocorreria nas colônias de ultramar, o uso dessas imagens tinha cunho referencial e como finalidade tanto a reprodução de efeitos artísticos conseguidos por pintores dos grandes centros quanto a tradução em linguagem regional das mensagens contidas numa cena produzida sob o gosto de outras culturas. Como as gravuras eram monocromáticas e de dimensões reduzidas, a elas muito podia ser acrescido do sabor e preceitos locais. Cores eram selecionadas conforme a iluminação da região e disponibilidade de pigmentos; proporções eram adequadas às do lugar onde a obra seria instalada; traços e feições aproximados aos que o pintor via em seu cotidiano. Não podemos também desprezar o fato de que, ao tomar uma representação consagrada como referência, artistas e comitentes se afastavam de incorrer em más interpretações das escrituras e do risco de ter suas intenções mal entendidas ou distorcidas por desafetos e superiores hierárquicos - o que em tempos de Inquisição era uma importante salvaguarda. Além disso, a repetição de modelos visuais ia, por si só, ao encontro da centralização doutrinal promovida pela própria igreja romana.


O ambiente cultural

          As encomendas ao recém-chegado são certamente indício do prestígio de que Pedro Nunes desfrutava no meio cultural eborense, mas revelam sobretudo sua proximidade ao poder. Por ser filho de um viticultor, não teria tido meios de arcar com os custos de deslocamento, estadia e manutenção pessoal em Roma. Vítor Serrão afirma que por trás dessa empreitada havia o patrocínio dos condes de Vimioso, além da influência que seu primeiro mestre e agora sogro exercia como pintor do Santo Ofício. Nunes dispunha, portanto, de uma rede social relevante, que incluía, além disso, um arcebispo, D.José de Melo, e um futuro embaixador, D.Miguel de Portugal.
          A importância desse ambiente deve ser contextualizada, pois ainda que favorecessem a produção cultural, a aristocracia e o clero portugueses estavam longe de serem equiparados aos italianos. Não havia versões lusas dos antigos Sforza de Milão, dos Gonzagas de Mântua, dos Medicis florentinos. Não havia Doges venezianos em Évora, muito menos um Julio II ou um Paulo V. Vigorava um atraso cronológico em relação à arte de centros como Flandres e Roma e a universidade local era orientada pela erudição jesuítica. Na produção filosófica, destacavam-se estudos aristotélico-tomistas e de direito em Coimbra ao redor de homens como Francisco Suárez e Pedro da Fonseca. Não havia uma Santa Teresa d'Ávila portuguesa, nem um São João da Cruz, muito menos uma correspondência de espírito entre Camões e Shakespeare ou Montaigne. Nossa visão de Portugal dos séculos XVI e XVII precisa, assim, escapar do economicismo e do enfoque colonialista para considerar o que fundamenta a cosmovisão desse povo, sua história, seus costumes e aspectos psicológicos mais profundos. Um exemplo disso está no próprio tipo de fomento à arte então praticado. Um artista, quando pago para produzir uma obra religiosa, o era por alguém que almejava prestígio pelos critérios sociais de seu meio, alguém que reconhecia no patrocínio uma provável indulgência para as agruras da vida, que buscava uma recompensa eterna pela devoção cristã - e isso estava tão longe de imprescindir das ousadias iconográficas de um pintor quanto de ser totalmente explicado por fatores econômicos.
          Para ampliar o horizonte de compreensão da época de Pedro Nunes é preciso que consideremos esse universo cultural para além da geopolítica e nos ocupemos também de seu convívio social, das práticas da oficina e do dia-a-dia. Podemos nos indagar sobre que opiniões teria sobre os que o governavam e que tipo de música teria ouvido. Terá lido Camões? Conhecia Garcia de Resende? Gil Vicente? Os registros de sua vida são escassos, mas a história nos fornece elementos conjeturais. O artista morreu poucos dias antes da deflagração do motim eborense contra o jugo filipino, a chamada Revolta do Manuelinho. Terá convivido, como suspeita Vitor Serrão, com participantes das agremiações literárias regionais? Literatos costumam ter opiniões bastante peculiares sobre o poder e os costumes... Não sabemos. Mas o artista terá certamente tomado contato com os ofícios que faziam da catedral de Évora um centro de produção musical graças ao polifonismo de Duarte Lobo, Felipe Magalhães, Manuel Mendes e Manuel Cardoso. Algumas canções de cunho popular, religiosas e anônimas, compiladas na época, também nos ajudam a recompor aspectos da visão de mundo com a qual Nunes havia lidado em sua formação. Como essa, datada do último quartel do século XVI:

Pues a Dios humano vemos / Venid, venid adorarleemos.
Venid adorar el chiquito / i gram Dios de lo criado
Pues quiso ser humanado / Pera alegrar nuestro spirito.
I por Dios le confessemos / Venid, venid adorarleemos.
 
Link para a canção: Segréis de Lisboa

          Os versos revelam um Deus humano, Jesus menino, já não mais majestático como na imaginação medieval, tampouco um juiz severo. Um Jesus de características humanas entre os homens, descrito pelas ambiguidades da arte no presente, não num passado remoto em dimensões inalcançáveis.
          Em outra canção coetânea temos agora o convite ao idílio e singeleza de um campo meio locus amoenus, meio Arcádia grega, tão caro aos renascentistas - mas temperado pela fantasia de amores picantes:

Venid a suspirar al verde prado / Comigo zagalejos y vos pastores
Pues muero sin morir de mal damores / Tu eres soledad qu’esta comigo
Saberes qu’es padecer novos dolores /Pues muero sin morir de mal damores
Link para a canção: Coro Giovanni Bardi

          A maior parte dos registros musicais do período, presume-se, foi perdida no terremoto de 1755. Ainda assim, obras como essas que chegaram a nossos dias nos revelam o quão rico e complexo é o universo cultural português dos séculos XVI e XVII e nos ajudam nessa recomposição imaginária do pensamento da época, afastando-nos da visão limitada, focada apenas em navegações e na União Ibérica. Pois filósofos, religiosos, aristocratas, mecenas, pintores, escritores, compositores, comércio de gravuras, oficinas familiares, canções populares, amigos, desafetos e uma infindade de códigos e leis, escritos ou não, são fatores que compõem diretamente o universo cultural e imaginário daqueles que se dedicam à arte.


Pedro Nunes e a pintura maneirista portuguesa

          Foi nas gerações anteriores a Nunes que a pintura se consolidou em Portugal. Se o cultivo das artes inicialmente se manifestava na importação de obras flamengas, aos poucos, no decurso do século XVI, a produção local se desenvolveu, partindo das influências estrangeiras e se mesclando a preceitos próprios. Em meados do século, o interesse pelas liberdades italianas se fazia notar mas, após o Concílio de Trento, muito desse incipiente experimentalismo pictórico foi abandonado em prol das novas orientações doutrinais da Igreja. A obra de nosso pintor se enquadra nessa última fase do Meneirismo Português, em que há predominância de expressões contidas, composições simplificadas e disposição de figuras em caráter retratístico.
          A comparação de sua produção com a de artistas dos períodos anteriores nos ajuda a compreender essas diferenças. Numa Descida da Cruz de Antônio Nogueira (? - 1575) notamos a movimentação de personagens típica do maneirismo italiano. A concepção é dinâmica e captamos a ocorrência de diferentes fatos simultâneos conforme percorremos a tela com o olhar. Maria aparece desfalecida, figuras se mostram de perfil, de frente e de costas e os personagens que sustentam o corpo de Cristo o fazem em posições penosas. A obra, de 1564, contrasta com os painéis de Nunes para o altar-mor da igreja do mosteiro de N. Sra dos Remédios, de figuras predominantemente em disposição frontal e adoração estática.

Antônio Nogueira - A Descida da Cruz, 1564

          Distinção maior pode ser atestada em relação à obra de Vasco Fernandes (1475-1542), em cuja Pentecostes se nota a influência direta dos flamengos no interesse pelo interior arquitetônico, pelo colorido e riqueza de detalhamento, e dos italianos pela simetria, expressividade das figuras e iluminação. Vasco Fernandes, ou Grão Vasco, como ficou conhecido, trabalhou com Francisco Henriques, de origem e formação flamenga.
Vasco Fernandes - Pentecostes, 1534-35

          Outro fator importante relacionado à pintura maneirista portuguesa é o tratado Da Pintura Antiga, concluído em 1548 pelo artista e erudito Francisco de Holanda. Não sabemos se Pedro Nunes teve contato com a obra, sequer se a conhecia. Mas o interessante a respeito da publicação é a relação das ideias nela contidas com os preceitos artísticos e culturais portugueses em voga. Holanda viveu por alguns anos em Roma, onde manteve contato com Michelangelo e seu círculo, ficando bastante impressionado com a experiência, que lhe rendeu matéria para os escritos.
          Holanda abre seu tratado com analogias entre a pintura e a criação divina, estabelecendo que se Deus fez a luz e da luz é feita a pintura, o claro numa tela é mais nobre que o escuro. Mais adiante procura a fundamentação dos propósitos dessa arte, afirmando ser ela "a declaração de um pensamento em obra visível e contemplativa. É uma segunda natureza, história de todo o tempo, corpo da memória. É fazer e criar de novo, numa tábua limpa e lisa, ou num papel cego e inobre, fazer e criar de novo quaisquer obras, divinas ou naturais com tão perfeita imitação que pareça naquele lugar estar tudo aquilo que não está, e ser longe o que está tão perto, e chegar-se ou afastar-se de nós, como vero e incorporado, o que é imaginado e incorpóreo - isto somente com a ajuda de duas linhas, uma reta e outra oblíqua, tiradas da régua e do compasso."
          Sobre a relação da arte com a religião e os objetivos da representação do sagrado, Holanda conclui no sexto capítulo da obra: "A Igreja conserva a espiritual pintura como perfeito livro e história do passado e como memória mui presente do futuro, e como mui necessária contemplação das operações divinas e humanas." E prossegue: "A Igreja quis que tivéssemos as histórias do velho e do novo testamento pintadas e esculpidas, e todas as outras memórias santas, para nossa contemplação e doutrina."
          "Para nossa contemplação e doutrina" - ideia cara ao Concílio de Trento. Ideia cara a Pedro Nunes ao pintar seu retábulo para o altar-mor da igreja do mosteiro de N. Sra dos Remédios... Nos capítulos finais Holanda orienta "que as cores não devam ser muito alegres(...) mas antes tristes e graves". "E no meio dessa tristeza e sombras acudir com uma, duas, até três cores finíssimas e alegres, porque esse dissimulado aviso faz grande harmonia e consonância entre as tristes cores e tem maior primor do que se pode cuidar."
          Com relação à pintura de um céu, afirma que até ele "se deve pintar nublado e coberto quando a imagem for chorosa e triste, assim que as árvores pareçam tristes e os caminhos, a terra e as ervas do campo e até mesmo o céu pareça que se condói em paixão e piedade por aquele caso." 


1620, A Descida da Cruz

          Em 1620 Pedro Nunes recebeu de D.Manoel de Vasconcelos, Cavaleiro da Ordem de Malta e membro do Conselho de Estado filipino, a encomenda de uma Descida da Cruz para uma capela da Sé de Évora. O desejo de realização da obra, cuja temática é em nossos dias conhecida como Deposição, estava registrado no testamento da recém-falecida mulher de D.Manoel, D. Helena de Noronha da Costa.
          Não conhecêssemos o contexto Tridentino e a trajetória da pintura portuguesa, julgaríamos a tela monumental, de 4,60 por 3 metros, conservadora e estática, fruto de um artista voltado para o passado, indiferente à produção italiana de seu tempo. Não conhecêssemos o tratado de Francisco de Holanda, julgaríamos as cores pesadas e indesejadas para a cena de uma capela. Não conhecêssemos os registros musicais de então, julgaríamos o desejo de contiguidade ao fato bíblico uma curiosidade da arte pictórica. Não conhecêssemos a prática da inspiração em gravuras de bíblias e missais nem o temperamento português, ignoraríamos a tradição iconográfica em que a obra se insere e julgaríamos as expressões das figuras como secas e por demais contidas. Apegássemo-nos à visão economicista, não compreenderíamos o motivo de alguém ter legado ao viúvo incumbência tão contrária à acumulação de capital.
          Pois não é desse conjunto de fatores que surge uma obra de arte? Das leis escritas e veladas? Da fusão de costumes, normas, condições econômicas e psicológicas, cujos limites são indemarcáveis? O leigo extrai da imagem o tema representado; o religioso, os preceitos da fé; o estudioso, sua fundamentação e implicações na cultura e civilização. Mas e ao artista enquanto criador, que papel compete a esse indivíduo, produto também dos mesmos fatores? Ora, não podemos esquecer que o artista é antes de mais nada produto de si, da vontade de criar e se dedicar à arte, de sua competência no uso de um meio para transmitir uma ideia que pode ser sua, concebida por outros ou ambas as coisas.
          Na Descida da Cruz temos, assim, muito mais que o céu de Francisco de Holanda e o dinheiro de um viúvo; muito mais que a ideologia Tridentina; que o ambiente cultural e a provável inspiração numa gravura de Marcantonio Raimondi a partir do original de Rafael. Temos também uma força expressiva que não depende apenas da fisionomia dos personagens nem da torção de seus corpos para nos persuadir de seu valor. Disposta numa altura superior à dos olhos, a tela coloca de antemão o observador como testemunho do fato retratado, realçando a dramaticidade da visão pela iminência da queda de Jesus sobre os braços de José de Arimatéia, enquanto transpõe os limites da realidade ao clamar por nosso auxílio para a sustentação do corpo.
A Descida da Cruz de Pedro Nunes, conforme disposta
na Capela do Esporão da Sé de Évora

Marcantonio Raimondi - gravura de A Descida da Cruz, de Rafael

          Ao fundo, figuras caminham em direção à cidade, certamente para a reclusão de sábado, como narram as escrituras. Maria Madalena está à esquerda, emocionalmente irriquieta conforme tendências iconográficas. Maria, mãe de Jesus, denota perplexidade mas não atinge o paroxismo do desfalecimento, como na gravura de Raimondi e na tela de Antônio Nogueira. Aqui, o paralelismo de seu sofrimento com o do filho é conseguido pela alusão da repetição, em ambos, da postura corporal em "S", como explicitado numa Deposição do flamengo Rogier van der Weyden e na obra de Antônio Nogueira. A personagem que a ampara, alva e lingilínea, poderia ser a de uma tela de El Greco. Terá Nunes conhecido a obra do artista de Creta durante a passagem pela Espanha?

Rogier van der Weyden - Deposição da Cruz, 1435-38

          Ainda que as figuras estejam em sua maioria de perfil, há escorços notáveis no personagem do arco superior, nas mãos de Maria Madalena, de José de Arimateia e no pé da figura de turbante à direita, provavelmente Nicodemos. A escassez de elementos anatômicos é compensada tanto pelo naturalismo dos tecidos e acessórios quanto pela representação das distensões provocadas pela gravidade no corpo de Cristo. Além da disposição centralizada, a coloração diferenciada e o fato de ser a única figura despida contribuem para a percepção de Jesus como protagonista de todo o acontecimento.
          São artifícios como esses que fazem qualquer um, cristão ou não, capaz de identificar o sentido para o qual convergem todos os elementos representados na cena. Mas para nós, indivíduos do século XXI e conhecedores da iconografia cristã, resta também a instigante sensação de déja vu, mesclada ao fascínio de se comparar a obra a seu universo cultural para nela descobrir as liberdades do pintor.
          O ferimento nas costelas de Cristo indica que Nunes se baseou no Evangelho de João. Seria por motivos pessoais? A indagação parece pequena quando descobrimos a figura à direita, que aponta para o corpo já não mais na cruz. Um autorretrato de Nunes? Provavelmente. O personagem nos fita como se percebesse nossa curiosidade pelo cenário ao redor e nos repreendesse: "Olhe para lá !" Sendo o pintor, reafirma com isso o caráter supratemporal da arte e, como na canção popular, registra o assombro pela contiguidade a Jesus e ao fato que se consuma: "A Dios humano vemos! A Dios humano vemos!" E continua a apontar. Pois apesar do deslumbramento do artista com as possibilidades de seu pincel, a crucificação é a essência da obra, não a localização das testemunhas, não seus gestos e aparências, não a lembrança da vaidade humana escondida num canto da tela.

Consummatum est


          As obras de Pedro Nunes posteriores à Descida da Cruz que chegaram a nossos dias revelam um triste declínio de qualidade. Os motivos talvez jamais sejam elucidados: concessões a comitentes, mudanças na oficina, adequação a novos preceitos doutrinais, crise econômica ou problemas de ordem pessoal. Em 1629 o artista saía da prisão por ter agredido a mulher de um carregador. Recebera dela o perdão e o auxílio de um boticário de nome Gião Álvares para o pagamento da fiança.
          Tendo legado mais telas e retábulos para a Santa Casa da Misericórdia de Beja, para a Ermida de São Joãozinho, para a Igreja do Salvador e capela-mor da Sé de Évora, para o Hospital do Conde e os conventos de Santa Mônica e Santa Catarina de Sena, Pedro Nunes morreu em 1637. Foi enterrado no dia 7 de Agosto.

          A arte alimenta nosso espírito justamente por ser limitada. Através dela captamos uma seleção de aspectos da realidade e imaginação registrados por alguém, em determinada época, sob determinadas condições e propósitos. Podemos por alguns instantes nela viver e reconhecer nossos medos e desejos, prazeres e sofrimentos. Podemos colocar-nos no lugar tanto dos personagens quanto do autor e identificar o que deles há em nós, preenchendo lacunas e interpretando ambiguidades. Podemos nela vencer o tempo e a morte, domar o desconhecido, fazer de formas e cores uma nova realidade. E depois voltar a nós, apontando para outros o universo da obra em que mergulhamos - como a figura anônima de Pedro Nunes, que aponta o corpo de Cristo sendo tirado da cruz. 

*       *       *





Transforma-se o amador na coisa amada,
Por virtude do muito imaginar:
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois com ele tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia,
Que como o acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma;
Está no pensamento como ideia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.

Luís de Camões 
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Este ensaio foi apresentado no 2o semestre do ano de 2012 como conclusão da disciplina Arte e Arquitetura, ministrada pelo professor Cesar Tovar no curso de pós-graduação em História da Arte, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. As publicações citadas são, de Vítor Serrão: Pedro Nunes, um notável pintor maneirista eborense; de Francisco de Holanda: Tratado da Pintura Antiga; e o documento Sacrosancti oecumenici cincilii Tridentini canones et decreta.

2 comentários:

Casa Morgado Esporão disse...

Interessante.

jose cabrita nascimento disse...

Muito bom. Estou a pensar fazer um ensaio fotográfico sobre a "Descida da Cruz"